“Por natureza, as pessoas falam”, diz Breda, uma das três irmãs que habitam uma pequena casa numa vila piscatória. A rotina dos dias abate-se sobre as paredes claustrofóbicas. De vez em quando um bolo, de vez em quando uma chávena de chá, de vez em quando uma bolacha. Sempre as palavras. Nunca se calam estas irmãs, para enganar uma solidão apenas interrompida pelo peixeiro, que entra com as marés, trazendo o peixe e ecos da vida lá fora.
A mais nova, Ada, incita as mais velhas, Breda e Clara, conduz-lhes os gestos, as palavras. Como uma encenadora, tece as marcações, dirige o tom, corrige as frases, dá-lhes a deixa. A história é a mesma, dia após dia: a recordação da noite que lhes mudou a vida, há tantos anos, quando ainda jovens as duas irmãs se maquilharam, vestiram, alindaram e meteram numa bicicleta, percorrendo 15 quilómetros rumo à danceteria onde esperavam encontrar o amor e depararam com a desilusão e a vergonha. Uma noite tantas vezes reencenada, pela irmã que nunca foi beijada, num desesperado mas quase sagrado ritual familiar.
É este o ponto de partida para “O Novo Dancing Eléctrico”, a peça do irlandês Enda Walsh que os Artistas Unidos estreiam esta quarta-feira, dia 9, no Teatro da Politécnica em Lisboa, encenada por Jorge Silva Melo e protagonizada por Andreia Bento, Antónia Terrinha, Isabel Muñoz Cardoso e Pedro Carraca. E sobre a qual o encenador conversou com o Observador, com alguma ressaca americana à mistura.
Com este “O Novo Dancing Elétrico” regressam a Enda Walsh, um autor quase da casa. Porque o quiseram encenar agora?
Ando sempre à procura de peças para os atores que estão connosco. Esta andava há muitos anos aqui na minha secretária. E tínhamos connosco a Isabel Muñoz Cardoso, a Andreia Bento e o Pedro Carraca. E a Antónia Terrinha — que esteve muitos anos no Bando e eu redescobrira numa série da RTP que passava aos domingos — estava livre. Pareceu-me um elenco perfeito. E acho que é mesmo. É a sexta peça de Walsh que fazemos. Fizemos “Disco Pigs” (encenada por Franzisca Aarflot), “Acamarrados”, “A Farsa da Rua W”, “Penélope” e co-produzimos “Misterman”. Publicámos três livrinhos e tudo. E o Enda Walsh escreveu para nós a peça breve “Lyndie Got a Gun” que estreámos no Dona Maria, num espetáculo de homenagem a Harold Pinter (antes do Nobel…).
Esta foi a peça que se seguiu a “A Farsa da Rua W” onde três homens fechados em casa continuavam a contar os sonhos, as derrotas, as vitórias de uma vida de pobres. Gosto deste teatro que ainda cheira a cerveja, a serradura no chão dos pubs pobres e cheios de óleo, a lojas de apostas nas periferias das cidades, a fish and chips, a pobreza e a sonhos. Enda Walsh, na tradição dos melhores irlandeses (Synge, claro, o de “O Campeão do Mundo Ocidental”) não é no entanto um documentarista, a sua linguagem e as suas personagens não são ‘copiadas’ da vida, não estamos na televisão nem num reality show a olhar para os pobres. A sua invenção é poética, rítmica e, a meu ver, encantatória. Adoro a cena em que as três mulheres projetam no pobre peixeiro os seus sonhos sexuais e de maternidade, é uma grande cena em qualquer teatro do mundo…
Quem são estas mulheres que protagonizam a peça?
A vida parou para estas duas mulheres mais velhas. Um episódio escandaloso e humilhante marcou-as para sempre, tinham elas 18, 19 anos. E agora andam pelos 60. Trabalharam na fábrica de conservas de peixe. Estão agora reformadas, mal vistas na aldeia, fechadas em casa, cheias de recordações, bolachas, chá. E estão dependentes da irmã mais nova: a única que trabalha, a que todos os fins de tarde exige que elas relembrem o episódio escandaloso da sua juventude. São irmãs das filhas de Bernarda Alba? Sim, não podem fugir. E quando há uma que pode, a mais nova, não o faz. A porta fica aberta, mas ela não sai. Há sempre no Enda Walsh este momento de “servidão voluntária”, as personagens temem a liberdade, preferem a clausura. Nisso “Acamarrrados”, em que um pai e uma filha deficiente estão amarrados a uma cama num quartinho cada vez mais pequeno, é exemplar.
Estas são personagens que habitualmente não vemos em palco: velhas, gastas e pobres. O que o atrai nelas?
Gosto dos esquecidos, dos que não são lembrados, gosto destes sonhos pequenos e destas frustrações enormes. “Será destas pessoas o Reino dos Céus”?
Um acontecimento fugaz num passado já distante marcou estas vidas para sempre. Seremos assim tão frágeis?
Sim, recusamos a vida de hoje dizendo “no meu tempo”, fechamo-nos cada vez mais nas memórias do grupo ou da família, deixamos de olhar. O tempo pára quase sempre num determinado momento, primeiro amor ou primeira dor. Nem sempre vivemos, estas mulheres sobrevivem apenas — e mal.
Há em Ada, a irmã mais nova, de quem as mais velhas dependem, uma certa crueldade…
Já em “Acamarrados” Enda faz surgir uma rapariga presa numa cama, deficiente, que devora fotonovelas e folhetins como o Quixote se alimentava dos livros de cavalaria. Ada é a herdeira dessa filha (que entre nós foi criada pela Carla Galvão). Aqui é a única que trabalha, que sai de casa, que manda nas outras, lhes dá (ou não) comida, é a Bernarda Alba dessa casa. Mas é desejada por um homem (um rapaz que fornece os restos de peixe). E não aceita a declaração, tem medo, temos sempre medo de sair de casa. É a “servidão voluntária” de que fala La Boétie?
Será que, tal como estas irmãs olham uma noite acontecida 40 anos antes como o momento que mudou para sempre as duas vidas, também vai haver quem vai olhar para a noite passada [da vitória de Donald Trump] como aquela em que tudo mudou?
A noite passada foi tremenda. Mas não mudou as nossas vidas. por enquanto. Daqui a muitos anos saberemos a catástrofe em que nos metemos. Muitos anos? Não sei… Não gosto.
De 9 de novembro a 17 de dezembro; 3ª e 4ª às 19h; 5ª e 6ª às 21h; sáb. às 16h e às 21h