Em “Silêncio”, o seu novo filme, e um projecto que tentava realizar há mais de 25 anos, Martin Scorsese instala-nos em cheio no centro da dor. Dor física, dor emocional, dor intelectual, dor espiritual. Ao pé dos tormentos gráficos, tangíveis ou invisíveis, lancinantes, frontal ou requintadamente cruéis, rasgados na carne, na mente e na alma dos protagonistas de “Silêncio”, os horrores crua e detalhadamente encenados do mais explícito cinema de terror soam a falso e a ridículo. E esses tormentos são tanto mais impressionantes quanto Scorsese os filma com sumptuosidade visual, citações pictóricas e cinéfilas, requinte estético. Raras vezes no cinema a tortura, o martírio, o sofrimento, foram representados ao mesmo tempo de uma maneira tão bela e tão bruta, como se pode ver logo na abertura, quando o padre Ferreira (Liam Neeson), um jesuíta português, assiste, numa zona de fontes termais, ao suplício, com água a ferver, de outros padres por soldados japoneses.

[Veja o “trailer” de “Silêncio”]

Estamos no Japão, em meados do século XVII e no auge das purgas anti-cristãs no país. Ao terem notícia de que o padre Ferreira, o seu mentor, terá abjurado da fé sob tortura extrema, convertido ao budismo e adoptado os costumes nipónicos, dois outros jesuítas portugueses, os padres Rodrigues (Andrew Garfield) e Garupe (Adam Driver), recusam-se a acreditar nisso e conseguem autorização para viajarem clandestinamente até ao Japão e saberem o que aconteceu na realidade. Uma vez lá chegados, são testemunhas da implacável perseguição e dos tremendos suplícios infligidos aos missionários portugueses e às populações convertidas. E vão ver a sua fé posta à prova com uma consistência e uma violência como nunca imaginaram. “Silêncio” é um “thriller” espiritual onde o “suspense” depende da capacidade das personagens aguentarem, por um lado, o sofrimento próprio e alheio, e pelo outro, a mudez contumaz de Deus perante as suas dúvidas e penas.

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[Veja a entrevista com Martin Scorsese]

O filme adapta o romance homónimo e epistolar do escritor japonês católico Shusaku Endo, já filmado em 1971, com o mesmo título, por Masahiro Shinoda, e que em 1996 inspirou “Os Olhos da Ásia”, do português João Mário Grilo. É uma história que serve como luva cara em mão de senhora fina nas preocupações e fixações morais e religiosas de Martin Scorsese, cujo catolicismo cheio de interrogações, dúvidas e contorções se tem manifestado ao longo de toda a sua filmografia, embora através de histórias, personagens e situações cruamente profanas, com dimensões alegóricas mais ou menos claras e intensas. E de forma mais explicita e controversa na sua adaptação do livro de Nikos Katzantzakis “A Última Tentação de Cristo” (1988) e no falhado “Kundun” (1997).

[Veja a entrevista com Andrew Garfield]

“Silêncio” está, assim, muito longe de ser um filme de proselitismo linear e edificante. Os dois padres, sobretudo Rodrigues, são testados na força da sua fé para lá dos limites do suportável, e este, além de cometer o pecado do orgulho ao identificar a sua provação com a de Cristo, é posto perante ter de escolher entre não ceder na sua crença e com isso sacrificar inocentes, ou abjurar e salvá-los. Scorsese não demoniza nem menoriza os japoneses e permite-lhes exporem as suas razões pela repressão do cristianismo, não reduzindo a história a um confronto de religiões (ou, pior, de teimosias), e frisando que ele é também cultural, de mentalidades e mundividências (só lhe escapa a dimensão política – era inadmissível para o shogunato haver estrangeiros com crescente poder sobre a população, incluindo já membros das classes mais influentes); e mostra como o cristianismo, para muitos dos nativos convertidos, e para desilusão dos dois jesuítas, se resumia á promessa de um Paraíso que compensava uma vida terrena de miséria e dor. Há momentos em que “Silêncio” está mesmo á beirinha de ser um filme mais sobre a derrota da fé cristã, do que sobre a sua vitória, mesmo que secreta e íntima.

[Veja a entrevista com Adam Driver]

Esta grande abertura ao ponto de vista japonês permite que duas das personagens mais interessantes de “Silêncio” sejam nipónicas. Uma, é a do velho, inteligente, astuto e pernóstico governador-inquisidor Inoue (o fabuloso veterano Issei Ogata), que procura sem cessar os pontos vulneráveis na armadura moral e espiritual de Rodrigues, ora através do diálogo cortês, razoável e civilizado, ora através da violência sobre os aldeãos convertidos que estão encarcerados ao pé do padre português. A outra, é a do atormentado Kichijiro (Yôsuke Kubozuka), guia e alma danada de Rodrigues e Garupe, uma espécie de Judas repetente, que trai, abjura e arrepende-se, volta a trair, a abjurar e a arrepender-se, e assim sucessivamente, numa eterna e masoquista convulsão de fé, cobardia e arrependimento. Kichijiro traz consigo uma agitação que quebra uma certa solenidade pomposa que ameaça o filme a espaços.

[Veja a entrevista com Liam Neeson]

É que Martin Scorsese não é propriamente um cineasta do espiritual, do transcendente, do conflito mais íntimo e agónico entre a vontade de acreditar e o impulso para descrer, como o foram Dreyer, Bresson ou Bergman. E este filme não está livre de laboriosidade, de reiteração desnecessária, de algum “forçar a nota” narrativo e visual, sobretudo no esforço do realizador para nos dar toda a amplitude da agonia e do conflito interior do padre Rodrigues, que culminará na sequência nocturna do tremendo dilema que este terá que enfrentar: manter-se firme na sua fé e condenar os seus, ou rejeitar a Deus e condenar-se, mas salvar o próximo. Há momentos em “Silêncio” em que damos connosco a dizer ao filme, “Sim, já percebi, estás a chover no molhado, adiante, adiante!”

[Veja imagens da rodagem de “Silêncio”]

Estas fraquezas do gesto formal e as limitações de discurso do realizador são contrabalançadas pelo sincero fervor, pela funda convicção e visceral inquietação com que Scorsese, católico inquieto e macerado que é, as põe em cena, bem como pelas poderosas interpretações de Garfield, Neeson, Ogata e Kubozuka, e pela combinação de opulência visual, de beleza brutal e de minudência expressiva em que “Silêncio”, rodado em Taiwan, banha, algures entre Caravaggio e Kurosawa. No final, e tenhamos ou não convicções religiosas, a grande vitória é a da crença no poder sublime do cinema.