Notícia de última hora: Fevereiro de 1987 foi há 30 anos. Para os mais novos que estejam a ler, talvez soe a uma era longínqua em que os pterodáctilos ainda faziam voos rasantes sobre as nossas cubatas e o Thomas Edison trabalhava numa ideia de pôr luz em nossas casas para que, um dia, as pessoas tivessem como carregar o telemóvel. Para os mais velhos, soará porventura ridículo, uma vez que 87, comparado com o “Antigamente” (assim mesmo, com maiúscula), foi uma época recentíssima e modernaça, em que uma pessoa já podia sair à rua com os penteados da Adelaide Ferreira e casacos de enchumaços sem ser acusada de posse de arma branca nem desviada pelos serviços secretos americanos para posterior interrogatório acerca das verdadeiras intenções do nosso povo relativamente ao Planeta Terra.

Não sabemos. O tempo é tão relativo, diria o Rui Veloso uns anos depois. O que sabemos é que, em Fevereiro de 1987, estávamos na primeira classe e o Shéu ainda jogava, mas lembramo-nos de modo mais vívido daqueles sons metálicos iniciais dos contentores a serem carregados na rádio e da chave caindo do que de qualquer lição concreta desse primeiro ano de escola.

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A capa de “Circo de Feras” (Polygram, 1987)

E, fenómeno ainda mais estranho: hoje, continuamos a ouvir e a cantar os “Contentores” como se nada, quase nada, muito pouco, tivesse mudado dentro de nós. Acontece-lhe o mesmo? Circo de Feras, o álbum de consagração dos Xutos & Ponatpés, saiu há 30 anos. Continuamos a cantá-lo e a dançá-lo no fim nostálgico de certas noites com a mesma alegria, quando é para ser alegre, e uma imitação daquele mesmo coração partido da adolescência, quando é para ter o coração partido da adolescência. Não fizemos nada de particularmente errado; é apenas o resultado da soma da vida com um daqueles raros grandes discos intemporais.

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[“Contentores” na televisão, em 1987:]

https://www.youtube.com/watch?v=3E-tLhbjVcs

Circo de Feras foi o terceiro longa-duração dos Xutos & Pontapés e o primeiro a garantir-lhes um lugar no top de vendas. Veio cá para fora entre os míticos Cerco e 88, compondo aquela que é, provavelmente, a série mais inspirada de sempre do rock português. Acabou de se gravar, ao que consta, no último dia do ano de 86 e foi a estreia da banda por uma editora multinacional, a Polygram, produzido por Carlos Maria Trindade.

Abria com os já lembrados “Contentores” e seguia por um formidável alinhamento: “Sai prá Rua”, “Pensão”, “Desemprego”, “Esta Cidade”, “Não Sou o Único”, “N’América”, “Vida Malvada” e “Circo de Feras”. Pouco mais de meia hora de disco, absolutamente directa ao assunto. Em tão pouco tempo de registo e em canções tão curtas, então como agora, era impossível esconder momentos maus ou incursões desinspiradas. “Sai prá Rua” foi um segundo single falhado e a história não rezou dos dois temas que lhe seguiam no line-up, mas o tempo e a super-banda Resistência ajudariam a fazer dos restantes um impressionante registo de seis hits em nove possíveis.

[“N’América” na RTP, 1987:]

Naquelas poucas voltas ao carrossel, Tim, Zé Pedro, Kalu, João Cabeleira e Gui iam da atmosfera Clash à maneira da casa, muito jovens heróis da cintura industrial, de “Sai prá Rua” e “Vida Malvada”, à ambição mais ampla, a flirtar com o épico, de “N’América” ou “Não Sou o Único”, passando pela inesperada escuridão lírica de “Esta Cidade”. Depois, claro, tudo ia ter ao célebre tema-título.

“Circo de Feras”, a canção, permanece como um dos grandes temas da banda sonora de qualquer rapaz ou rapariga que tenha crescido nestes últimos 30 anos em Portugal. Era um singular caso de boa balada rock no panorama nacional, cançoneta de amor para guitarras não xaroposas, simples, linear e imediata para as massas, mas com meia dúzia de requintes que a salvavam de se esgotar na exaustão do FM, até que nunca mais pudesse ser ouvida. “De modo que a vida é um circo de feras”, por exemplo, não é, exactamente, o tipo de verso que se encontra na produção pop média nacional – nem pela metáfora, nem pela construção frásica. Depois, havia o tom geral da canção, bem equilibrado naquela mistura irresistível de miserabilismo e amor, fatalismo e rebeldia.

[a versão original da canção “Circo de Feras”:]

Uma sinopse possível para a canção e para o álbum: “A vida é uma merda, eu próprio só faço asneira, mas o meu amor é de verdade. Tendo em conta que o mundo é um lugar perigoso, cheio de feras e perigos à espreita, julgo que seria de considerar pedir-te, mesmo que de modo implícito, para não andares aí fora sozinha. Afinal, estarias bem melhor entre os meus braços – e ainda me davas uma hipótese de fazer alguma coisa bem e assim salvar esta alma atormentada”. Isto, é claro, traduzido em rock.

Até culminar no refrão desse tema de encerramento, onde, pela primeira vez, se arranjou uma forma simples de dizer que se gosta de alguém como no “I love you” inglês, sem a puerilidade do “gosto de ti” nem o aparentemente anacronismo literário e, de resto, impossibilidade musical, do “amo-te”, que entra por uma canção adentro como o célebre hipopótamo na não menos famosa loja de porcelanas: derrubando tudo em volta. “Quero-te tanto”, cantava Tim. “Quero-te tanto”, repetimos nós, adolescentes de três décadas no acampamento ao redor da fogueira, de olhos ora fechados, ora abertos na direcção do olhar certo. Era a primeira vez que conseguíamos dizer palavras suficientemente fortes para serem sentidas e suficientemente lânguidas para não nos comprometerem. “Quero-te tanto”. Meio coração e meio corpo, sem pedidos de casamento.

[ouça o disco na íntegra através do Spotify:]

Tendo em conta que todos já assistimos a, pelo menos, 17 concertos dos Xutos, todos somos testemunhas da vitalidade que o notável lote de canções de Circo de Feras mantém. 30 anos depois, ombreia sem pudores, com a passagem do tempo, os telemóveis, os convidados internacionais dos rock in rios, o processo-de-cinismização-em-curso dos adultos e o pêlo na vento dos putos. É vê-los a todos, do estivador à doutorada em bioquímica, esganiçando-se por alcançar o tom do Tim (é, de facto, um tim; uma espécie de tom, mas mais alto). O passado que foi lá atrás, a vida que vai torta, o sol que brilhará quando as trevas se abrirem, esta cidade cheia de filhos da puta sem razão e sem sentido, tudo isso, perdoem o Francês dos rapazes, é património imaterial deste recanto da humanidade.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal)