Estão “esgotadas as tentativas de diálogo” com Miguel Honrado, secretário de Estado da Cultura e responsável pela pasta do cinema. Realizadores e profissionais do cinema, em protesto contra a forma como são nomeados os júris dos concursos do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), vão recusar estar presentes num jantar marcado para sábado, dia 11, na embaixada de Portugal em Berlim, para o qual está convidado Miguel Honrado.

A posição foi conhecida na terça-feira de manhã em conferência de imprensa no Cinema São Jorge, em Lisboa, e marca o extremar de posições numa polémica que dura há vários meses.

O jantar na embaixada foi marcado para assinalar a presença de oito filmes de produção portuguesa no Festival de Cinema de Berlim, que começa nesta quinta-feira.

“Temos uma opinião favorável sobre trabalho da embaixada na promoção da cultura portuguesa, mas não podemos partilhar os méritos do nosso trabalho com o atual secretário de Estado da Cultura, que tem demonstrado uma posição ameaçadora para o futuro do cinema português”, afirmou Luís Urbano, da Associação de Produtores de Cinema Independente (APCI).

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Ao Observador, o gabinete do secretário de Estado não quis comentar o boicote e indicou que aquele responsável não vai mudar de posição.

Isabel Machado, da Associação pelo Documentário — Apordoc, afirmou que Miguel Honrado não quer alterar a forma de nomeação dos júris porque “está refém de interesses privados”. “O secretário de Estado tem receio de que as operadoras deixem de financiar o cinema”, acrescentou, referindo-se às regras atuais.

As operadoras de televisão por cabo (NOS, Meo e Vodafone, entre outras), assim como o regulador Anacom, estão obrigados a pagar uma taxa de anual que reverte para o ICA e visa o financiamento de obras cinematográficas através de concurso.

Numa demonstração de que o diálogo com o Ministério da Cultura chegou mesmo ao fim, os cineastas disseram ter solicitado uma reunião com o primeiro-ministro, António Costa. O pedido seguiu a 2 de fevereiro e ainda não obteve resposta, informaram. A acontecer, o encontro terá como representantes Luís Urbano, Cíntia Gil (festival DocLisboa) e Teresa Villaverde (realizadora).

Outra forma de protesto, em torno do Festival de Berlim, será a recolha de assinaturas junto de “agentes internacionais” de cinema, para uma carta com a posição dos cineastas. O documento será depois entregue ao primeiro-ministro e ao presidente da República, segundo Luís Urbano.

A posição é apoiada pela Associação Portuguesa de Realizadores (APR), APCI, Apordoc, pelo Sindicato dos Profissionais do Espetáculo (CENA) e ainda pelos festivais IndieLisboa, DocLisboa e Curtas Vila do Conde, entre outros.

Os representantes da APR disseram ter 116 associados, o que constitui a “esmagadora maioria” dos realizadores portugueses.

Também marcaram presença na conferência de imprensa a realizadora Salomé Lamas, cujo filme “Eldorado XXI” estará em Berlim, e a dupla João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata.

Estes profissionais estão contra a proposta de lei do Governo, ainda não divulgada em público mas da qual tiveram conhecimento oficial a 2 de janeiro, que revê as regras e os programas de apoio financeiro a obras cinematográficas.

A proposta mantém as regras estabelecidas por lei em 2013, segundo as quais a nomeação dos júris está a cargo da SECA — Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual, do Conselho Nacional de Cultura (órgão consultivo do governo). Deveria ser o ICA a nomear os júris, sustentam, para se evitar “conflitos de interesses”.

“Ser júri de um concurso público é uma tarefa de grande responsabilidade que deve estar acometida ao organismo que promove os programas de apoio, ou seja, o ICA, e não à SECA, que não tem natureza executiva, apenas consultiva”, defendeu Luís Urbano, sustentado num parecer jurídico recente que solicitou aos juristas Margarida Vaz e João Afonso Parente. “Não queremos um ICA distribuidor de dinheiros, queremos que assuma todas as suas competências.”

Questionada sobre exemplos concretos de efeitos negativos das atuais regras, Cíntia Gil não quis “entrar no tipo de discurso sobre se este jurado ou aquele filme são bons ou maus”, mas disse que a consulta dos currículos dos membros dos júris demonstra “conflitos de interesses e algumas lacunas nos requisitos de reconhecido mérito cultural e idoneidade”

A consequência de existirem júris nomeados pela SECA é “falta de diversidade”, afirmou Cíntia Gil, “e eventual falta de liberdade” dos criadores.

“A liberdade e a independência que têm caracterizado o cinema português estão ameaçadas”, acrescentou Filipa Reis, da APR. “Os operadores de televisão por cabo têm interesses privados nos resultados dos concursos”, sublinhou. A sugestão implícita é a de que empresas como a Nos, que além do serviço por cabo detém canais e salas de cinema, possam ter os seus representantes nos júris a votar favoravelmente propostas cinematográficas com mais importância comercial que estética.

Na tarde de terça-feira, o Ministério da Cultura informou o Observador de que a proposta de lei deverá ser aprovada a tempo dos concursos deste ano. Perante “diferentes visões” sobre esta matéria houve aspectos sobre os quais “foi necessária uma tomada de posição”.

A saber: “No que concerne à eleição do júri para a seleção dos projetos a concurso, o ICA compõe uma bolsa de jurados e distribui os júris pelos vários concursos tendo por base uma lista bastante alargada proveniente da SECA; e a SECA passa a ter mais assentos, integrando um maior número e uma maior diversidade de representantes do setor do cinema e do audiovisual.”