Foi lançada esta sexta-feira uma petição online que contesta o atual processo de nomeação dos júris dos concursos públicos de apoio ao cinema, cuja atribuição é da responsabilidade do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA). No texto, assinado por realizadores, produtores e outras personalidades da área do cinema, é referido que a escolha dos jurados não tem sido feita de forma transparente e que os nomes propostos para integrarem as listas dos júris têm sido avançados por “potenciais beneficiários”. Além disso, os autores da petição defendem que os júris estão, na sua maioria, “longe dos requisitos que a Lei estabelece” e que deste processo “resultou um insuportável ambiente de suspeição sobre decisões de apoio tomadas por [estes] júris”.

E acusam diretamente o Instituto do Cinema e Audiovisual, fazendo um repto ao Ministro da Cultura:

Parece-nos ainda mais surpreendente que a Tutela – esta, a anterior ou qualquer outra – possa aceitar sem incómodo o modelo de absoluta promiscuidade criado pela Direção do ICA, onde um tráfico de influências devidamente regulamentado serve para agentes diretamente interessados no resultado dos concursos condicionarem antecipadamente os seus resultados.”

Desde 2013 que compete à Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual do Conselho Nacional de Cultura (SECA) escolher e aprovar “anualmente, para cada concurso, um júri composto por um mínimo de três e um máximo de cinco elementos efetivos, e três suplentes, escolhidos de entre personalidades com reconhecido currículo, capacidade, idoneidade e com manifesto mérito cultural e competência para o desempenho da atividade de jurado”, de acordo com o previsto pelo Decreto-Lei n.º 124/2013, de 30 de agosto.

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Em 2015 houve uma alteração: tinha de ser o ICA a constituir os júris, mas os nomes desses jurados continuavam a vir da SECA. As listas voltavam a seguir para a SECA que dava o aval. A SECA é composta por representantes das diferentes áreas profissionais do cinema (argumentistas e realizadores, por exemplo), de empresas que distribuem e exibem filmes, da RTP e das televisões privadas, entre outros.

Ainda no ano passado, uma outra alteração teve lugar. Os nomes propostos pelos membros da SECA deveriam ir acompanhados já de uma declaração de aceitação dos mesmos, o que supunha um contacto direto entre ambos. Uma situação que, segundo a petição assinada por realizadores como João Botelho, Miguel Gomes, Pedro Costa, João Canijo, João Salavisa, entre outros, faz com que este processo não tenha paralelo noutros concursos públicos que envolvam atribuição de verbas do Estado:

Não nos parece necessário transpor estes procedimentos para o campo de outros concursos públicos (imagine-se um representante da Mota Engil a chegar ao Ministério das Obras Públicas com propostas para o júri do concurso a que se quer candidatar, trazendo inclusivamente papéis assinados por eles…) para entender que a promiscuidade deste sistema, se não atenta contra leis gerais relativas a concursos públicos, atenta certamente contra toda e qualquer regra de bom senso”.

“Para nós é impossível que este processo se mantenha, é um sistema completamente absurdo e opaco”, diz ao Observador o realizador Miguel Gomes, alegando que “há falta de transparência” nas regras atualmente em vigor. O cineasta, responsável por alguns dos mais relevantes sucessos do cinema português nos últimos anos, não é brando nas palavras. “Com este processo a direção do ICA não assume as suas responsabilidades, assegurando regras mínimas de transparência. Afastou as suas responsabilidades [de escolher os jurados], fez uma espécie de reunião corporativa e promoveu uma espécie de lei da selva em que essas pessoas, trazendo os seus jurados, se vão digladiar numa reunião para imporem os nomes que escolheram”, acusa.

“É difícil fazer prova de que existe tráfico de influências e corrupção, mas que este processo levanta todas as suspeitas parece-me óbvio e não percebo como não é obvio para a tutela”, acrescenta Miguel Gomes.

Também João Matos, produtor da Terratreme, se mostra muito crítico da atual conjuntura. “Desde o início que dissemos que esta situação trazia pouca clareza”, afirma ao Observador. “Por muito que se mascarasse”, diz, “o que se verifica é que havia um controlo dos júris” por parte de certas entidades ligadas à televisão e ao cinema. “Trata-se de dinheiro público”, lembra o produtor, lamentando ainda o “esvaziamento” por que o ICA tem passado.

Jurados vindos de bancos e das operadoras

Mas, para os subscritores da petição, este não é o único problema. Os júris, “na sua ampla maioria”, estão “muito longe dos requisitos que a Lei estabelece: ‘personalidades com reconhecido currículo, capacidade, idoneidade e com manifesto mérito cultural e competência para o desempenho da atividade de jurado'”. Quer isto dizer que muitos dos jurados estão longe de ter a experiência adequada para o cargo que foram convidados a desempenhar.

“A incapacidade de saber avaliar tem sido gritante”, diz João Matos. O produtor afirma que há jurados que demonstram “incapacidade para ler argumentos” e “incapacidade para perceber a importância da presença na Quinzaine de Cannes”, entre outros exemplos. João Matos aponta o concurso de apoio aos novos talentos e primeiras obras como o exemplo “mais gritante de todos” por ter um júri muito “ligado à televisão”, algo que é “muito inacreditável”. Este ano, os jurados do concurso foram um professor de História da Universidade Nova de Lisboa, um jornalista televisivo de cinema, o diretor de marketing da NOS Lusomundo, o diretor do festival Caminhos do Cinema Português e um consultor de ficção da RTP.

“Basta fazer uma consulta aos currículos dos jurados nos últimos três ou quatro anos para se perceber” que, “em muitos casos”, há “uma falta de competência para julgar cinema”, acrescenta Miguel Gomes. “Em 2017 não aceitaremos a homologação de nomes de jurados que saiam deste processo completamente obscuro”, afirma o realizador, que sublinha a importância de esta petição juntar “realizadores e produtores que não fazem parte do mesmo grupo, da mesma associação e que têm ideias de cinema diferentes”.

As listas finais, publicadas no site do ICA, têm um pouco de tudo: há diretores de marketing de empresas de comunicação, indivíduos ligados a grandes cadeias de cinemas e até currículos que no campo da experiência na área da cultura têm apenas a palavra “nenhuma”. Há também o caso de um jurado que trabalha num banco, na área do setor imobiliário, e que faz parte do júri que vai avaliar os projetos de cinema documental.

Ministério da Cultura quer mudar a regulamentação

Contactado pelo Observador, o Ministério da Cultura esquivou-se a responder a questões relacionadas com o atual processo de seleção dos júris. Em vez disso, salientou o interesse em mudar a atual Lei, que “está a ser objeto de revisão, num trabalho desenvolvido colaborativamente com o setor”. Em cima da mesa está uma nova proposta onde a decisão de seleção dos jurados passará a ser da exclusiva competência do ICA.

Segundo o Ministério, já foi enviada uma proposta de revisão da Lei de 2013 aos “representantes do setor do cinema e audiovisual, no início deste mês, solicitando análise e contributos”. A maioria das propostas recebidas diz respeito a “ajustes ao nível da simplificação de procedimentos, clarificação de conceitos e competências e compatibilização do diploma com normas da UE”.

“Foram também solicitados contributos tidos por convenientes e que consistam eventualmente em alterações substanciais ao atual regime, respeitando o quadro legal.”

Até ao final de setembro, o Ministério espera “que o setor se mobilize e envie os seus contributos ao ICA” para que seja possível elaborar “uma proposta final e dar continuidade aos procedimentos necessários para a alteração do decreto-lei”, que prevê que a decisão de seleção dos jurados passe para as mãos do ICA, que passará a aprovar as listas depois de consultar a SECA.

Ao Observador, o ICA limitou-se a afirmar que o “processo de escolha dos júris está a ser revisto em sede das alterações ao Decreto-Lei 124/2013, que regulamenta a lei do cinema”, salientando que “na nova proposta, que está em fase de construção com o próprio setor, a decisão de seleção de jurados” será da sua “exclusiva competência”.

Luis Urbano, da produtora O Som e Fúria, garante que a recuperação das competências de escolha e seleção por parte do ICA é apenas uma parte da proposta de alteração que está em cima da mesa. Está “prevista uma coisa mais mais grave”, que é “fazer um downgrade daquilo que a lei exige para o perfil dos júris — passarem a ter só competência técnica”.

A ideia do ICA é ter técnicos capazes de fazer a avaliação dos projetos, como a senhora do BES que está no júri dos documentários”, disse, referindo-se a uma das juradas, responsável pela comunicação da Área de Gestão Imobiliária do BES.

“O que torna as decisões dos júris boas ou más para quem está dependente delas, é saber se quem as tomou é ou não de reconhecido mérito cultural. Um escritor, um jornalista reconhecido ou um cineasta que não está nos concursos é muito diferente de alguém com competência técnica. O lado da competência técnica é o ICA que tem de a ter”, salientou Luis Urbano, frisando que é ao instituto que cabe decidir questões como o plano de financiamento e a sua consistência.

“No ano passado, o antigo Secretário de Estado percebeu que este processo era um problema no sistema e, na altura, decidiu ele próprio presidir às reuniões da SECA e tentar fazer aquilo que a proposta do decreto está a querer fazer — devolver esta competência ao ICA.”

Para Luis Urbano, a nova proposta “é um pequeno passo à frente, mas há um passo atrás, que tem a ver com o downgrade“. “A questão essencial já não é só de semântica. O que nos preocupa é se esta direção do ICA tem credibilidade para gerir este processo, seja de alteração do decreto ou de nomeação do júri.”

Questionado sobre se acha que a atual direção do ICA deve apresentar demissão, o produtor frisou que “a pergunta que o Secretário de Estado tem de fazer é se esta direção do ICA tem capacidade para dirigir as questões relacionadas com a política cultural do cinema“. E salientou: “Se me perguntar a mim, eu digo que não.”