Comecemos este texto com uma das coisas que o vídeo-árbitro vai também retirar ao jogo de futebol: o efeito surpresa. E comecemos assim com a história do SC Cambuur, um modesto clube holandês criado em 1964 que andou meia dúzia de temporadas na Eredivisie, principal escalão do país. Por lá passaram Reza Ghoochannejhad, criativo iraniano conhecido por razões óbvias apenas por Gucci; Jaap Stam ou Michael Mols. E… pouco mais: o Cambuur, hoje no sexto lugar da 2.ª Divisão, é mais ou menos isto. Mas não é que este modesto conjunto da cidade de Leeuwarden conseguiu ser o destaque no arranque dos trabalhos do segundo dia do Football Talks?
A explicação é simples: se existe equipa que beneficiou do vídeo-árbitro experimental na Holanda foi o Cambuur. Num jogo para os quartos-de-final da Taça em Utrecht, o juiz do encontro voltou atrás com a decisão de assinalar uma grande penalidade a favor dos visitados depois de se ter concluído que, aquilo que parecia uma mão de um jogador do Cambuur na área, foi na verdade um pontapé na cabeça de um adversário de um jogador do Utrecht (o encontro acabou com uma vitória dos visitantes no prolongamento). Depois, na partida da meia-final frente ao AZ, o árbitro reviu o lance que daria o triunfo à formação de Alkmaar por 1-0 no período de compensação, mas a verdade é que o golo foi precedido de um falta sobre o guarda-redes. Não adiantou de muito ao Cambuur, atentando nos resultados da equipa. Até nesse jogo com o AZ, perderia nas grandes penalidades. Mas mostrou como pode ser importante a introdução deste novo auxílio aos árbitros a bem da verdade desportiva.
David Elleray, atual diretor técnico do International Football Association Board e antigo árbitro internacional da Premier League, marcou presença no Football Talks para detalhar os últimos avanços a propósito da figura do vídeo-árbitro no futebol. Acabou como começou: “O importante é termos a mínima interferência com o máximo benefício”. Pelo meio, sintetizou tudo aquilo que se pode esperar no futuro, com Portugal no lote de ligas eleitas.
Recuando a março de 2016, quando foi decidida a utilização do vídeo-árbitro de forma experimental e apenas para erros claros, o inglês precisou que esse modelo já é testado na Holanda e nos Estados Unidos mas acrescentou uma série de muitos outros países com interesse em recolher essa nova era do desporto, em particular Portugal entre pontos tão díspares como Austrália, Brasil, França, Alemanha ou Arábia Saudita. O Mundial de Clubes deste ano, por exemplo, também contará com o vídeo-árbitro, podendo seguir-se o Mundial de seleções de 2018, que será organizado pela Rússia.
Onde, como, quando e porquê?
“Existem três categorias de lances que entram neste trabalho do vídeo-árbitro: os golos (com o exemplo em vídeo do tento do Peru que eliminou o Brasil da última Copa América); as grandes penalidades bem ou mal assinaladas (como aquele do Atl. Madrid-Barcelona do ano passado, que valeu a eliminação dos catalães da Champions); e os vermelhos diretos, nunca por acumulação (apareceu o argentino D’Alessandro a dar um murro no adversário, mas aqui neste ponto podíamos passar a tarde toda a ver exemplos e exemplos que infrações para expulsão)”, resumiu.
“Não queremos mudar um aspeto: o árbitro é que terá sempre de tomar a decisão. Ou seja, o vídeo-árbitro só entra em ação se o árbitro principal pedir para rever um lance. Não queremos que esteja pressionado para tomar decisões, da mesma forma como, isso sim, queremos que esteja sempre visível para que ninguém pense que está a ser pressionado por alguém para decidir isto ou aquilo. Já o vídeo-árbitro deverá contar com um juiz atual ou antigo mais um operador/realizador. Os treinadores e os jogadores não poderão pedir ‘challenges‘ e posso até dizer que falando com alguns técnicos todos percebemos que alguns não iriam usar isso da melhor forma“, disse.
Então como deve funcionar o vídeo-árbitro? “Primeiro, o encontro só deve ser interrompido numa zona neutral. Depois, se o árbitro tem dúvidas ou se percebe que existe alguma suspeita, deve fazer a indicação da TV com os braços e o vídeo-árbitro dirá o que vê nas imagens. Aí, o árbitro principal tem uma de duas opções: ou aceita essa decisão ou pede para ele próprio ir rever as imagens na TV que existe no campo”, continuou, antes de enumerar os desafios que estes primeiros testes já foram permitindo levantar. “Onde se coloca a câmara no campo? Não pode ser atrás na baliza porque aí costumam estar os ‘ultras’, as claques; não pode ser entre os bancos porque, caso contrário, vinham 20 jogadores a correr atrás dele; assim, deve ficar mais ou menos a meio mas do lado oposto aos bancos. Outro ponto: até onde se pode recuar? Até à recuperação da bola por parte de uma equipa e o início da jogada de ataque. Se, por exemplo, um erro na área contrária dá golo da outra equipa, teremos de aceitar…”
Entre o café, uma cerveja e um manual de 70 páginas
No final, David Elleray ainda conseguiu arrancar muitos sorrisos, ao desenhar uma imagem que os adeptos do futebol poderiam ter do vídeo-árbitro: “Muitos pensam que é dar um telemóvel ao árbitro e que quem está na sala bebe um café ou uma cerveja enquanto vê o jogo. Não é assim: posso dizer que têm um manual de 70 páginas. 70, sete e zero. E vai travar alguns males do futebol, como as simulações, porque serão apanhadas, ou as condutas violentas, que serão sancionadas. Em paralelo, servirá como ferramenta para a manipulação de resultados, e ainda há pouco vimos um árbitro banido para sempre por ter sido apanhado num esquema desses”.
“Esta será a mudança mais significativa de sempre do futebol”, garantiu. “Mas não pensem que terá assim tanta influência a nível jogo. Veja o caso do Peru-Brasil na Copa América: o árbitro demorou cinco minutos para restabelecer a ordem, quando com o vídeo-árbitro poderia ter gasto 45 segundos para uma boa decisão. Mais: nos Estados Unidos, em dez jogos, utilizaram-se apenas três vezes o vídeo-árbitro. Não vamos conseguir acabar com o erro, mas permitir evitar os mais grosseiros. Até agora tem corrido bem e deve ser utilizado no Mundial de 2018, se as coisas continuarem assim. Porquê agora? Antigamente metade das pessoas queriam repetições nos jogos de futebol, outra metade não. A certa altura, deixámos de pensar, parámos de falar e fomos testar. Agora teremos de ver questões de custos ou de treino de vídeo-árbitros, porque é complicado ensinar algo que depois, na realidade, vai envolver muita pressão. É como passar milhares de horas a voar e depois conduzir pessoas“, rematou.
