Dragões? Guerreiros de gelo a fazer lembrar mortos-vivos? Um corvo de três olhos? À partida tudo nesta mistura de ingredientes me parecia suficiente para nem sequer me interessar por “Guerra dos Tronos”. Parecia palhaçada a mais para uma saga aparentemente situada na Idade Média. E por isso ignorei as três primeiras temporadas. Passaram sem que desse por elas. Até que um dia vi o primeiro episódio. E depois o segundo. E o terceiro. Numa semana tinha visto as três primeiras temporadas completas e ansiava pela chegada da quarta. Desde então que sou um fã incondicional.

Perguntar-me-ão o que justifica esse fascínio. Respondo de forma simples: a luta pelo poder e tudo o que ela revela sobre a natureza humana.

“When you play the game of thrones you win or you die” (“Quando se entra na guerra dos tronos ou se vence ou se morre”), a famosa frase de Circei Lannister, é a chave da série e, porventura, a regra mais presente na longa história da humanidade.

“Guerra dos Tronos” não é uma reconstituição histórica, mas porventura ensina-nos mais história do que muitas séries didáticas. E fá-lo não apenas por ter como grelha inspiradora a Guerra das Rosas, a série de lutas dinásticas que durou trinta anos (de 1455 a 1485) e se caracterizou pela sangrenta luta entre várias famílias pelo trono de Inglaterra, mas por retratar sem pudor como a luta pelo poder foi, por regra, uma luta sem limites morais ou escrúpulos existenciais.

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[veja aqui um documentário sobre a “Guerra dos Tronos” e os paralelos que tem com a História:]

https://www.youtube.com/watch?v=yOyUy5teWp8

O espectador moderno de “Guerra dos Tronos” horroriza-se com o cinismo, a crueldade, os métodos, a violência sem limites que perpassa pela saga imaginada por George R.R. Martin e porventura pensa que os seus episódios mais brutais – e são muitos, mas mesmo muitos – são meramente ficcionais. Exageros, como os exageros de “House of Cards” – mesmo no tempo de Trump as maquinações de Francis Underwood ainda estão para lá do verosímil. A diferença para “Guerra dos Tronos” é que mesmo os seus momentos mais cruéis se inspiram quase sempre em acontecimentos históricos bem reais. Um exemplo clássico dessa verosimilhança é o dramático “Red Wedding”, o assassinato coletivo e brutal dos Stark no nono episódio da terceira série, um desenvolvimento que evoca o massacre de Glencoe, um episódio brutal ocorrido em 1692 na Escócia durante o qual 38 membros do clã McDonald foram massacrados numa só manhã.

Mas quando penso na forma implacável e inclemente como, em “Guerra dos Tronos”, os pretendentes se eliminam uns aos outros não posso deixar de recordar os mausoléus dos sultões otomanos, que podemos visitar em Istambul, onde as suas urnas estão rodeada de muitas outras urnas, algumas delas bem pequenas, e que são a de todos os seus irmãos, pois a regra é que quando um sultão ascendia ao trono devia mandar matar todos os seus irmãos e meio-irmãos, mesmo os de mais tenra idade. Hoje visitamos esses lugares sem sequer nos apercebermos desta sinistra disposição de Mehmet II, o conquistador de Constantinopla, uma norma que pragmaticamente se destinava a evitar disputas sucessórias que terminassem em guerras civis.

Num tempo em que, felizmente, nos habituámos a resolver os problemas de poder através de métodos democráticos e pacíficos e a tratar das disputas entre nações através da diplomacia, o desenvolvimento de “Guerra dos Tronos” recorda-nos duas coisas.

Primeiro, que a crueldade dos radicais do ISIS, nomeadamente quando degolam inocentes e difundem os vídeos das execuções, não é uma originalidade bárbara que seja estranha às nossas tradições. Bem pelo contrário: nunca a crueldade, a brutalidade, a luta implacável pelo poder à custa de milhões de vidas humanas atingiu dimensões tão ciclópicas como no passado bem recente, falemos nós das trincheiras da I Guerra, do Grande Terror estalinista, do Holocausto nazi ou da Revolução Cultural maoista.

Depois que, para nossa desgraça, ainda há quem olhe para “Guerra dos Tronos” como dando pistas sobre a forma de fazer política. E não, não estou a falar de realidades longínquas, antes de fenómenos políticos bem próximos, como o Podemos espanhol, cujo líder, Pablo Iglésias, não só coordenou um livro significativamente intitulado Ganar o Morir. Lecciones Políticas en Juego De Tronos, como associa a luta sem quartel pela conquista do Trono de Ferro à ideia de crise da civilização ocidental e até teoriza sobre a falta de legitimidade do poder e dos seus representantes, tendo tido o mau gosto de, seguindo este raciocínio, ter feito questão de oferecer a Filipe VI, o rei de Espanha, uma coleção de DVDs da série.

“Guerra dos Tronos” é também sobre a natureza dos homens, e está naturalmente muito mais próximo da visão de Thomas Hobbes, de acordo com a qual “o homem é lobo do homem, em guerra de todos contra todos”, do que da de Jean-Jacques Rousseau, para quem os homens seriam naturalmente pacíficos antes de serem corrompidos pela sociedade. O nosso estado natural é mais depressa o estado de guerra hobbesiano, sendo que durante a maior parte da história da humanidade ou se vencia ou se morria. A ordem e a paz resultam da civilização e Estados onde se governa em nome e com o consentimento dos governados são uma realidade recente e precária. Não devemos esquecê-lo nunca em nome de uma mítica “bondade original” que, na realidade, nunca existiu nem está na nossa natureza.

Também por isso é interessante que nesta saga nos confrontemos com personagens complexos onde mesmo os “maus” têm lados que apreciamos e por vezes nos surpreendem, ao mesmo tempo que os “bons” não são isentos de defeitos e estejamos sempre a ter de trocar de herói favorito – ou porque este morreu (os bons também morrem em Game of Thrones, talvez até morram mais do que os maus) – e de vilão mais detestado.

George R.R. Martin não é J.R.R. Tolkien, nem tem a sua cultura nem sofisticação, e “Guerra dos Tronos” não tem o alcance mitológico ou simbólico de O Senhor dos Anéis, estando de resto muito mais próximo da vida real e da história tal como ela aconteceu do que as alegorias do mundo mágico de Tolkien, mas mesmo assim não é apenas a sua imensa popularidade que faz dele um clássico moderno – é a forma como regressa aos grandes temas da literatura, da complexidade da alma humana à violência que sempre nos acompanhou através de todos os séculos e continentes.