A notícia, esta quinta-feira, de que o Governo irá avançar com a proibição de eventos desportivos nos dias de eleições levantou dúvidas entre especialistas e líderes partidários. É constitucional proibir jogos de futebol? A Liga de Futebol fica afetada pelo regime jurídico das federações desportivas? E, sobretudo, será que a proibição de eventos desportivos contribui efetivamente para a diminuição da abstenção eleitoral?
Governo vai proibir jogos em dia de eleições. Logo a seguir às Autárquicas
Do lado da Constituição, os especialistas contactados pelo Observador têm dúvidas sobre a legalidade da medida e sobre os desafios práticos a que a sua implementação obrigaria. Já no que toca à aplicação concreta da lei, os juristas de direito desportivo dividem-se sobre qual a melhor forma de aplicar a legislação e sobre como é que a medida afetaria as regulamentações desportivas. E relativamente à eficácia da medida, aí o Governo está isolado, com todos os partidos a desvalorizarem o impacto dos eventos desportivos na abstenção eleitoral.
Proibir jogos em dia de eleições é constitucional?
O constitucionalista Paulo Otero diz ao Observador que “antes dos desafios legais há uma série de obstáculos práticos que podem dificultar a aplicação de um diploma desse género”. Para o professor universitário, “pode acontecer um conjunto de coisas que inviabilizam esta lei”. Por exemplo: “O planeamento do calendário desportivo feito pelas federações pode ser feito antes da convocação de atos eleitorais, e aí o que se faz? Condiciona-se as eleições por causa de um evento desportivo?”
“Ou então, imaginemos que há um boicote eleitoral num sítio qualquer do país. Oito dias depois, é necessário repetir o ato eleitoral. Mantemos a proibição de eventos desportivos mais uma semana? Mas há mais: não falamos apenas de futebol. Há muitos eventos de muitas modalidades, a nível europeu ou mundial, que ocorrem em Portugal mas a marcação da data não depende das federações portuguesas. E aí, o que fazemos? Cancelamos eventos mundiais? Adiamos as eleições por causa de um evento desportivo, o que seria ainda mais caricato?”, questiona Paulo Otero.
Além dos obstáculos práticos, o constitucionalista também vê potenciais dificuldades legais na proposta. “Não sei se não haverá violação do princípio da proporcionalidade no que toca à necessidade da medida ou à adequação da medida aos objetivos propostos. Por um lado, não sei se há razões que justifiquem a necessidade desta medida, de o Estado intervir numa área que é gerida por privados. Por outro, não sei se a medida é adequada ao propósito que se propõe. Teria de se fazer um estudo de campo sobre qual a percentagem dos abstencionistas que não votam por motivos desportivos. Acho que a taxa daria vontade de rir”, conclui.
“Diria, até com alguma ironia: não se tente transferir para as entidades desportivas a falta de motivação política dos cidadãos para ir votar. A meu ver, é um pretexto para justificar a abstenção”, afirma ainda Paulo Otero. A justificar-se a medida, Otero defende que “a forma correta de o fazer seria uma solução concertada, um acordo entre as autoridades políticas e as federações desportivas em que estas federações procurassem uma auto-contenção. Isto é, no que dependesse delas, tentariam evitar a marcação de eventos de grande dimensão para os dias das eleições”.
O constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia também tem dúvidas sobre esta medida. Em declarações à rádio TSF, diz que a proposta “apresenta sérias dúvidas de constitucionalidade”, uma vez que é “excessiva, desproporcionada e que invade de forma intolerável a liberdade que assiste aos clubes desportivos de melhor se organizarem”. Para Bacelar Gouveia, “o exercício de direito de voto é um direito — e não um dever. Se a Constituição dissesse que era um dever jurídico ainda admitiria que, depois, o poder legislativo pudesse limitar a atividade dos cidadãos no sentido de lhes permitir, da melhor forma, cumprir esse dever”.
Mudar o regime jurídico das federações é a melhor forma de implementar a medida?
Depois da publicação da notícia pelo DN esta manhã, o secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Rebelo, confirmou à Agência Lusa que a ideia concreta passar por propor alterações ao Regime Jurídico das Federações Desportivas. “No desporto existe um regime jurídico das federações desportivas e é a esse regime jurídico que vamos propor alterações por forma a que eventos e espetáculos desportivos, sublinho desportivos, não coincidam com dias eleitorais”, disse João Paulo Rebelo.
Contudo, especialistas em direito desportivo ouvidos pelo Observador dividem-se sobre qual a melhor forma de aplicar a medida para proibir a realização de eventos desportivos em dia de eleições. Para Lúcio Miguel Correia, a alteração do regime “não faz sentido nenhum” e há que ter em atenção uma série de fatores.
“Temos de nos lembrar de que há equipas envolvidas em competições europeias e que há a obrigatoriedade de descanso entre jogos”, destacou o advogado, sublinhando que os jogos a meio da semana para as competições europeias tornam a marcação de jogos para os domingos “essencial para a boa gestão da competição”.
“Não se pode pedir que haja jogos sem o respeito pelos períodos de descanso a nível regulamentar, definidas quer nos regulamentos da Federação Portuguesa de Futebol quer nos da Liga, que têm autonomia”, defende o especialista.
Já o advogado e ex-secretário de Estado da Juventude e Desporto Alexandre Mestre defende uma outra abordagem. “A opção mais inteligente, a meu ver, seria o Governo publicar uma legislação específica a elencar um conjunto de eventos que não podem coincidir com dias de eleições”, diz Mestre ao Observador.
“Depois, as organizações desportivas, designadamente as federações e a Liga de Futebol, teriam de adaptar os seus regulamentos a essa legislação. Isso implicaria por exemplo abrir exceções para os intervalos entre jogos para o dia das eleições ou exceções relativas às presenças na Seleção Nacional. Tem de haver a necessária convivência entre as regulamentações desportivas e a lei”, explica.
No que toca à questão do futebol, teria de haver adaptações, quer no regulamento da Federação Portuguesa de Futebol (que gere todas competições amadoras em Portugal), quer no da Liga de Futebol (que organiza as competições profissionais da I e da II Liga). “Ambas têm regulamentos próprios e ambas teriam de os adaptar à legislação”, diz Alexandre Mestre.
Proibir jogos pode mesmo diminuir a abstenção?
Das dúvidas da esquerda às críticas duras da direita, todos os partidos já reagiram à notícia e parecem concordar que a proibição não é o melhor caminho.
O secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa, disse que “seria desejável que não houvesse sobreposição, em particular de jogos de futebol”, mas reconheceu que o “estímulo e mobilização” para a participação dos cidadãos nos atos eleitorais “não se consegue por decreto, mas sim com esse empenhamento para que as eleições se possam realizar com a mais ampla participação possível”.
Também a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, diz não achar que a proibição “seja uma forma de diminuir a abstenção”, que classifica como “um problema grande no nosso país e é um problema que tem até a ver com a credibilidade do próprio compromisso político”. “A abstenção é um problema muito vasto, muito maior do que jogos de futebol”, destacou a líder bloquista.
Até do lado do próprio PS parece haver dúvidas sobre a medida apresentada pelo Governo socialista. “Legislar especificamente sobre eventos desportivos pode ser útil mas pouco adianta à participação eleitoral”, disse Carlos César, líder parlamentar do PS. “É claro que seria preferível que outros eventos não contribuíssem para qualquer perturbação no dia do ato eleitoral”, sublinhou, acrescentando que não há “um drama no facto de estarem marcados jogos de futebol” para o dia das eleições autárquicas.
À direita, as críticas são mais duras. A líder do CDS, Assunção Cristas, diz que não vê “mal” se a medida avançar, mas sublinhou que não acredita “que os elevados níveis de abstenção no nosso país tenham a ver com um pontual jogo de futebol”. “Idealmente, no dia das eleições”, quanto “menos outras atrações, melhor”, disse Cristas. Contudo, sublinhou que “as urnas estão abertas muitas horas” e “as pessoas que querem votar têm muitas horas para o fazer e podem organizar o seu dia para votar mais cedo e depois verem o seu jogo de futebol”.
Do PSD chegaram as críticas mais contundentes, com o deputado social-democrata Luís Marques Guedes a considerar a medida “uma manobra de diversão e um insulto que procura infantilizar a mentalidade dos portugueses”. ” O que virá a seguir? Proibir cinemas, teatros, que se encerrem os museus ou os centros comerciais em dias de voto?”, questionou, em declarações à TSF.