“A Culturgest precisa de um novo impulso e de repensar a sua posição em Lisboa”, defende Mark Deputter ao Observador, na primeira entrevista desde que assumiu o cargo de diretor artístico daquela sala. “Durante duas décadas, este foi o único espaço com uma aposta consistente e firme na criação contemporânea nacional e internacional, o que não quer dizer que outras salas e instituições não tenham feito o mesmo, talvez de forma mais pontual. Aqui tem sido apresentado um leque diversificado de obras, desde trabalhos de jovens artistas até nomes consagrados, mas isso tornou-se anacrónico”, afirma. “Neste momento, há vários teatros a trabalhar no mesmo segmento de mercado, com a mesma oferta cultural. A Culturgest tem de voltar a olhar para aquilo que é. E assumir uma nova posição.”

Anuncia-se, assim, uma revolução suave, agora que Mark Deputter vai decidir a programação da sala lisboeta inaugurada em 1993 e pertencente a uma fundação da Caixa Geral de Depósitos (CGD). Até julho do próximo ano, as escolhas são ainda as do antecessor no cargo, Miguel Lobo Antunes.

As atuais 30 peças de teatro e dança vão dar lugar a apenas 15 por ano. Nos concertos, a redução também será para metade. As propostas de artes performativas e visuais, assim como as conferências e a música, deverão estar mais ligadas entre si. O Grande Auditório da Culturgest, com capacidade para 612 pessoas, marcará toda a programação: os espetáculos portugueses ou estrangeiros que ali sejam acolhidos, ou criados de raiz, terão de ter grande escala, para tirarem partido da estrutura e obterem mais público. Os coreógrafos belgas Anne Teresa De Keersmaeker ou Alain Platel serão presenças prováveis e o mesmo se diga de Ana Borralho e João Galante, Tânia Carvalho ou Marlene Freitas. Quanto aos festivais internacionais de cinema DocLisboa e IndieLisboa, que ali são acolhidos desde há vários anos, são para manter.

“Também quero que a Culturgest fomente a oferta artística de portugueses, para que depois circulem pelo país e por outros países”, resume Mark Deputter. “Vamos procurar uma programação com qualidade, com grandes espetáculos para o Grande Auditório, criados por artistas consolidados e com obra feita, mas que ainda não têm um público totalmente formado.”

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A careógrafa e bailarina Anne Teresa De Keersmaeker, nome familiar para o público português, deverá ser uma das apostas da Culturgest em 2018/19

Nascido em Lovaina, na Bélgica, há 56 anos, Mark Deputter chegou a Lisboa em 1995 e começou por dirigir o festival Danças na Cidade, mais tarde designado Alkantara, fundado pela sua companheira de então, a bailarina e coreógrafa Mónica Lapa (1965-2001). Programou dança no Centro Cultural de Belém e no Teatro Camões. Nos últimos nove anos dirigiu o Teatro Municipal Maria Matos, transformando-o numa referência, após o impulso inicial dado pela direção artística de Diogo Infante. É considerado um dos mais experientes produtores e programadores culturais do país.

Chega à Culturgest depois de a CGD ter lançado uma consulta pública em inícios de junho, com o objetivo de “recolher eventuais manifestações de interessados para um eventual convite” para a direção artística da sala lisboeta. O anúncio saiu na edição impressa do jornal “Público”.

“Fiz a candidatura e em julho fui convidado para uma conversa com um júri de três pessoas na sede da Caixa. No fim desse mês disseram-me que tinha sido escolhido”, revela Mark Deputter, que desconhece outros eventuais candidatos. Os jurados foram Rui Vilar (presidente da CGD desde fevereiro), António Jorge Pacheco (diretor artístico da Casa da Música, no Porto) e Maria Calado (presidente do Centro Nacional de Cultura). “Não os conhecia pessoalmente, sabia quem são, mas nunca nos tínhamos encontrado”, afirma. “Tendo em conta as características da Culturgest, e a minha experiência como programador e diretor artístico na área da criação contemporânea, pensei que fazia sentido candidatar-me. Tinha uma expectativa normal de ser escolhido.”

Entrou a 2 de outubro, sucedendo a Miguel Lobo Antunes, de 69 anos, que saiu para a reforma. Mark Deputter ocupa agora um gabinete de enormes janelas e muitas estantes com livros, no primeiro piso da Culturgest, precisamente a mesma área de trabalho do antecessor.

Ao refletir sobre o trabalho no Maria Matos – dois mandatos de três anos e mais um de quatro, que só terminaria em outubro de 2018 –, Mark Deputter apresenta um discurso de missão cumprida. “Eu próprio estava a equacionar que 2018 seria mesmo o fim, que já tinha feito o meu trabalho”, afirma, desconhecendo quem o irá substituir. A programação está garantida até ao fim da temporada de 2018 e agora a decisão cabe à EGEAC, empresa municipal de gestão cultural, e à vereadora da cultura da Câmara de Lisboa, Catarina Vaz Pinto.

Mas será que a linha de programação do Maria Matos vai mudar? E isso é desejável? O agora ex-diretor reflete:

“Os responsáveis políticos têm todo o direito de decidir sobre o caderno de encargos de um teatro, sobre a sua missão no meio da oferta cultural de uma cidade, mas acho que poderia continuar a ter a função que tem. O Maria Matos tem uma oferta importante, não há outra sala com aquelas características e meios. É uma programação dedicada em exclusivo à criação contemporânea, tem um perfil muito claro. É um teatro dinamizador, no sentido em que aposta muito na produção. Convidámos artistas a criar novos trabalhos ou ajudámo-los em termos financeiros e técnicos, para que avançassem na sua carreira. Ao mesmo tempo, demos visibilidade nacional, e depois internacional, a vários portugueses, muitos dos quais, há nove anos, quando ali comecei, estavam a trabalhar nas margens. Ana Borralho e João Galante, o próprio Tiago Rodrigues [hoje diretor do Teatro Nacional D. Maria II], Mala Voadora, Marlene Freitas, Tânia Carvalho. Não estou a dizer que se tornaram nomes importantes na cena internacional só por causa do Maria Matos, mas tivemos um papel relevante nisso.”

Mark Deputter defende a linha ideológica muito marcada que imprimiu ao Maria Matos, com ciclos de programação sobre ecologia e urbanismo, sexo e género, economia e trabalho, globalização e capitalismo, o que se deveu à “ligação entre criação artística e o pensamento crítico sobre a sociedade”, até porque “a própria arte tem evoluído neste sentido”.

“Nas artes em geral, e com certeza nas artes performativas, a criação dos anos 80 e 90 era sobretudo focada no meio, no formato. Os artistas procuravam novos formatos e projetos interdisciplinares. O foco era abrir e alargar as fronteiras da própria área. Fizeram-se coisas fantásticas. Mas a partir dos anos 2000, senti uma viragem na criação”, explica Mark Deputter. “Os artistas procuram cada vez mais uma ligação com a sociedade, um papel ativo em relação ao pensamento. Estão hoje mais ligados à realidade que nos rodeia. Nas artes performativas e visuais. O cinema documental, por exemplo, tem crescido de forma exponencial nos últimos 10 anos. Isso tem muito a ver com uma mudança no meio artístico. O Maria Matos acompanhou este movimento, por isso é que se pode dizer que tem uma programação com identidade ideológica, que com certeza não tem relação com a política partidária, mas com a política em sentido geral, a nossa maneira de olhar o mundo como seres políticos.”

Novos assessores e programação “de qualidade”

O projeto de Mark Deputter para a Culturgest começa agora a ser posto em prática e os primeiros resultados aparecerão a partir de setembro de 2018, quando a temporada que então se inicia tiver já sido inteiramente programada por ele. As taxas de ocupação da sala têm oscilado nos últimos anos entre 13% e 100% . “A ambição são os 100%”, confia Mark Deputter.

A ajudá-lo nas escolhas vão estar quatro assessores. Até ao fim deste ano, sai Francisco Frazão, assessor de teatro. A pasta fica com o próprio Deputter. Gil Mendo, da área da dança, já está de saída, porque entrou na reforma. Mantém-se Delfim Sardo nas artes plásticas e visuais, e dois novos assessores vão entrar: um para a música, outro para as conferências e programação paralela. “Já sei quem são, mas ainda não posso revelar os nomes, talvez até ao fim deste ano”, adianta o diretor artístico.

“Quando olho para a Culturgest vejo três coisas relevantes: a própria infraestrutura, sobretudo o Grande Auditório; as várias áreas artísticas: cinema, artes visuais, programas de teatro, dança, música e conferências regulares; e a notoriedade: é uma casa muito respeitada nos meios culturais, bem conhecida do público, e acho que pode ter mais público com uma programação de grandes espetáculos, concertos e conferências no Grande Auditório”, resume. O Pequeno Auditório continuará a ter um papel secundário.

Isto não significa que o equipamento passe a ser apenas pensado para as massas, com uma programação pouco vanguardista e próxima do gosto médio, esclarece Mark Deputter.

“Sinto uma certa desagregação das várias áreas. A Culturgest tem tido uma programação multidisciplinar, porque as várias disciplinas estão presentes, mas não é interdisciplinar. Há pouco contacto entre as várias áreas. Parece que a dança tem o seu perfil, as exposições têm o seu perfil, etc. Estão a funcionar cada uma por si, quase por acaso no mesmo edifício. Acho importante tentar recriar e estimular a consistência interna. Em vez de sermos uma casa multidisciplinar, seremos uma casa interdisciplinar. Não queria organizar a temporada por temas, como fiz no Maria Matos, queria momentos de contacto entre as várias áreas, sem querer reduzir a programação a isso. Vejo a Culturgest menos experimental e vanguardista do que tem sido até agora, mas firmemente com uma programação contemporânea, que não é necessariamente mais mainstream.”

O ponto de vista de Mark Deputter é elaborado. E é óbvio o gosto que tem por explicações longas e detalhadas. Prossegue:

“Há artistas que continuam a desafiar os cânones da criação, mas de maneira menos extrema, talvez. Podia-se optar por uma programação de grande público. Eu quero fazer o contrário: um programa de grandes espetáculos, com uma segurança em termos da sua construção, por parte de artistas que já comprovaram que têm qualidade e que a mantém ao longo dos anos. Quero utilizar isso para atrair mais público. Uma coisa seria programar espetáculos com códigos e cânones que são completamente reconhecidos pelo grande público, e que por isso atraem mais pessoas. Outra coisa é uma programação com qualidade.”

Há nomes que não oferecem dúvidas a Mark Deputter, como o de Anne Teresa De Keersmaeker ou Alain Platel. Além disso, é provável que passem por Lisboa com regularidade produções do Schauspielhaus Zürich, um teatro de palavra situado na parte alemã da Suíça, ou do Toneelgroep Amsterdam, o teatro nacional da Holanda.

Em relação aos portugueses, Mark Deputter quer fazer coprodução, mas de forma pontual. “Queremos convidar artistas portugueses, escolhidos quase a dedo, para produzirem para o Grande Auditório, para o segmento dos grandes espetáculos. Quero que a Culturgest fomente a oferta artística de portugueses, para que depois circulem pelo país e por outros países. Estes projetos, precisam de ser criados em parceria, à partida, porque implicam equipas grandes, mais meios, e não faz sentido fazê-las só para serem apresentadas por alguns dias só na Culturgest. Falo de parcerias internacionais, mas também nacionais, com o Rivoli, o [Teatro Nacional de] São João ou Guimarães [Centro Cultural Vila Flor].”

Ana Borralho e João Galante, Tânia Carvalho, Marlene Freitas são três dos nomes que Mark Deputter escolherá. “Isto não é uma lista definitiva, são pessoas com quem já tive conversas”, pormenoriza.

Se no Maria Matos o orçamento anual era de cerca de 550 mil euros, acrescidos de 200 mil de fundos europeus, na Culturgest terá cerca de um milhão e cem mil euros por ano. Os orçamentos totais da Culturgest têm vindo a reduzir-se bastante. Em 2009, o valor foi de 4,1 milhões, mas em 2016 foi de apenas 2,1 milhões (metade vai para para programação).

Mark Deputter assume um mandato de três anos mas defende que uma década é o ideal

“Programadores tornaram-se uma casta”

Licenciado em línguas e literaturas germânicas, pela Universidade Católica de Lovaina, e com bacharelatos em estudos teatrais e filosofia, Mark Deputter foi redator da revista de teatro flamenga “Etcetera” (1984-88) e diretor artístico do centro de artes performativas STUC, ligado àquela universidade. O papel de gestor cultural nunca esteve no seu horizonte enquanto jovem adulto, mas “a certa altura” percebeu que “tinha jeito e qualidades”, sobretudo “o gosto e a vocação para liderar equipas, para pensar projetos artísticos, para ajudar a criar um perfil nas organizações” em que trabalhava.

O contrato com a Culturgest dura até 2020, mas o diretor entende que “faria sentido” um mandato mais longo. “Três anos é suficiente para entrar, conhecer os cantos à casa e iniciar um projeto novo. É preciso tempo para sedimentar, para colocar o projeto no terreno e torná-lo reconhecível pelo público e pelos artistas. Um período lógico é à volta dos 10 anos.” Mas, admite, “não é isso que está em cima da mesa neste momento”.

O belga que agora se sente português, que encontrou em Portugal “um certo humanismo” nas relações entre pessoas, diz que a ida a para a Culturgest não aumentou o saudável assédio de que é alvo enquanto decisor na área das artes. “Sempre foi assim, faz parte e não sinto que seja uma pressão”, comenta.

“Eu próprio fomento isso, digo às pessoas para enviarem ideias e propostas. É curioso verificar que os programadores se tornaram uma casta, uma profissão com muito poder, muito mais do que antigamente. Como as próprias companhias não têm capacidade de funcionar, estão dependentes dos teatros municipais e de espaços como a Culturgest, que oferecem condições para eles trabalharem. Neste contexto, os programadores são muitas vezes vistos como limitadores, as pessoas que não deixam passar. Em parte, é verdade, mas também criamos oportunidades. Para mim, é importante apostar em artistas em que acredito, não só de que gosto, mas em que acredito e que me parecem relevantes, e ajudá-los a crescer.”