Pedro Dias entrou para a terceira sessão do seu julgamento, esta quarta-feira, pelas 10 horas. Tal como das vezes anteriores, chegou em silêncio. E algemado. Fez como na véspera — já vinha com folhas de papel branco A4 para tomar notas. Foi escrevendo em silêncio, ao longo de toda a sessão.

Esta quarta-feira, estava previsto serem ouvidas dez testemunhas, todas militares da GNR, mas apenas nove apareceram — a testemunha que faltou será ouvida na quinta-feira. O militar da GNR de Aguiar da Beira Carlos Santos, que abriu a porta de sua casa ao colega António Ferreira, após ter sido alegadamente baleado por Pedro Dias, foi o primeiro a prestar depoimento.

“Santos, levei um tiro na cabeça, o Caetano está morto, ajuda-me”

Carlos Santos, que trabalhava com Carlos Caetano e com António Ferreira há cerca de quatro anos, contou o que se passou na manhã em que o colega Ferreira lhe bateu à porta de casa, no dia 11 de outubro de 2016, pelas 7h15.

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A mulher do cabo Santos tinha acabado de sair de casa quando o militar da GNR bateu à porta, tanto que Santos pensou que a mulher “se tinha esquecido de alguma coisa”:

“Quando abri a porta, dei com o camarada [Ferreira]. Não o reconheci logo, estava escuro. Ele disse-me: ‘Santos, levei um tiro na cabeça, o Caetano está morto, ajuda-me‘.”

Quando chegou, Ferreira vinha “com o casaco na mão, trazia o polo enrolado à cabeça e vinha com a cara de um lado completamente inchada”. “Nem o olho conseguia abrir e cuspia sangue da boca. Quando levantou a camisola, vi que tinha o peito todo esfolado”, acrescentou.

Nessa altura, o cabo Santos foi buscar o telemóvel, ligou para os bombeiros “para explicar a situação” e depois para o 112. “Ao mesmo tempo fui dizendo ao Ferreira para ir falando comigo, para se manter acordado.

Em seguida, o cabo Santos ligou “para o comandante do posto” de Aguiar da Beira para dizer o que se passava. Enquanto isto acontecia, Ferreira balbuciava: “Ele tinha uma arma, fiz tudo o que ele mandava, não pude fazer nada.” Santos ainda tentou tranquilizar o colega, dizendo que Caetano se calhar só estaria ferido. Mas Ferreira não tinha dúvidas: o colega estava mesmo morto.

Depois de ter recebido a chamada do cabo Santos, pelas 7h20, o comandante Jorge Leitão explicou, no seu depoimento, que tomou as devidas “diligências para localizar a viatura” e “socorrer” Caetano. Em seguida, dirigiu-se até ao hotel em construção, onde a situação “teria sido iniciada”. No local, encontrou “sangue e um invólucro”.

Ainda em casa do cabo Santos, o militar da GNR baleado não sabia precisar onde estava o carro e o corpo de Caetano, limitando-se a apontar para a “mata” perto da casa. Quando António Ferreira foi levado por uma ambulância, Santos pegou no seu carro e tentou encontrar a viatura. “Peguei no carro e fui para o sítio do mato que ele indicava”, conta, mas sem sucesso.

Foi então que o comandante do posto lhe ligou a dizer que o veículo tinha sido localizado junto da EN229. Quando o cabo Santos lá chegou, já estavam no local militares da GNR e o corpo de Caetano estava na bagageira.

“Já lá estavam colegas e depois chegaram os bombeiros. [Os bombeiros] perguntaram se podiam tirar o corpo da mala, eu disse: ‘Façam o vosso trabalho’.”

Santos foi depois avisar os pais e a namorada de Caetano, e seguiu para o posto de comando. Depois, foi com os colegas, entre eles o guarda Luís Ribeiro — também ouvido esta tarde em tribunal –, a locais onde tinham ocorrido os crimes da madrugada de dia 11 de outubro, nomeadamente ao sítio onde Ferreira terá sido baleado por Pedro Dias. “Encontrámos uma poça de sangue, do lado de baixo do pinheiro. Mais para dentro do mato, havia outra mancha de sangue e ramagens partidas”, refere o cabo Santos, acrescentando que a PJ encontrou ainda um invólucro no local.

Os militares da GNR percorreram ainda o trajeto que António Ferreira terá feito até casa do cabo Santos, seguindo as “pingas de sangue” que encontraram na mata e que indicavam que Ferreira terá andado “perdido”. Isto é, de acordo com os militares Santos e Ribeiro, as marcas de sangue davam a entender que Ferreira caminhou numa direção, terá “caído” — a terra estava “um bocadinho mais mexida do que o normal” e havia uma “poça de sangue maior” no chão — e depois “voltou para trás”, aí em direção a casa do cabo Santos. Segundo o guarda Luís Ribeiro, seguindo as “pingas” demoraram cerca de três horas a fazer o percurso.

Descrevendo a personalidade dos colegas, o cabo Santos referiu que Carlos Caetano era “bem visto socialmente” e tinha “muitos amigos”. “Todos os dias ia jogar à bola.” Contou ainda que chegou a fazer patrulhas com Caetano e Ferreira e eram pessoas “calmas, serenas e sossegadas”. “Gostavam de levar as pessoas a bem em vez de serem mais assertivos“, acrescentou.

“Fiquei devastado”

O segundo depoimento da manhã coube a Vítor Silva, o militar da GNR que entrou ao serviço cerca da 1h30 de 11 outubro de 2016 com Carlos Caetano e António Ferreira. Silva ficou no posto de comando e Caetano e Ferreira saíram para fazer patrulha.

“Não tenho conhecimento de qual seria o giro deles”, afirmou o militar, acrescentando que, com “alguma frequência”, as patrulhas passavam pelo hotel em construção na zona das termas de Caldas da Cavaca — local onde estaria o carro onde Pedro Dias estaria a dormir e onde Caetano terá sido morto — porque, naquela altura, havia “muitos focos de incêndio”.

Uma ideia confirmada pelo comandante do posto de Aguiar da Beira. Na sua declaração em tribunal, Jorge Leitão disse ter dado instruções aos militares do posto para passarem por lá não só porque, naquela altura, havia incêndios que ocorriam pela meia-noite, 1h da manhã, mas também porque era uma zona onde já tinham ocorrido furtos.

Vítor Silva esclareceu que o primeiro contacto que teve com Caetano foi uma chamada telefónica, pelas 2h da manhã. “Ligou-me, disse que estava um indivíduo lá dentro [do carro] a descansar e deu-me o nome completo da pessoa”, explicou, acrescentando que não se lembra do nome completo, apenas de “Pedro João”.

Um pedido de informação sobre a matrícula do carro, por sua vez, já tinha sido feito por António Ferreira para a sala de situação do posto de comando. A viatura estava em nome de uma senhora — ex-companheira de Pedro Dias, Ana Laurentino — que era de Fornos de Algodres.

Depois do telefonema, Vítor Silva ligou para o posto de Fornos de Algodres. O militar que atendeu disse que conhecia o homem, mas pediu para ligar para o colega, Carlos Cruz. “Liguei ao Caetano para entrar em contacto com outro colega [Carlos Cruz] para saber mais informações”, contou Silva, referindo que foi a última vez que falou com Caetano. Não notou nada estranho, parecia “tudo normal“, acrescentou.

Vítor Silva conta que, mais tarde, foi feito um segundo “pedido de matricula” à sala de situação do posto de comando. Pelas 4h20 da manhã, altura em que as patrulhas vão ao posto para “fazer uma pausa para um cafezinho”, Vítor Silva ligou para o guarda Caetano, mas o militar não atendeu. Situação que não estranhou, pensou apenas que estaria a conduzir. Ligou então para Ferreira, que lhe atendeu o telefone, e perguntou-lhe se ia ao posto de comando.

“Ele respondeu: ‘Não te preocupes, está tudo bem, já vamos’.” Pouco tempo depois, é feito um terceiro pedido de matrícula. Só pelas 7h30 ouve pelas comunicações que havia dois militares da GNR feridos, mas só pelas 8h percebeu que o incidente envolvia António Ferreira e Carlos Caetano:

Fiquei devastado. Fiquei no posto a atender os telefones e a ouvir as comunicações.”

Pedro Dias “tinha um feitio esquisito”

O militar da GNR Carlos Cruz, a terceira pessoa a ser ouvida em tribunal, recordou a chamada de Carlos Caetano, feita às 2h58 de dia 11 de outubro. Caetano perguntou se Pedro Dias estaria envolvido em furtos, já que tinha vários jerricans de combustível no carro. O militar de Algodres respondeu que não, mas disse que Pedro Dias “tinha um feitio esquisito” — Cruz conhecia-o, pois já tinha estado em duas situações de fiscalização com Pedro Dias. De acordo com o guarda Cruz, nessa altura estava o colega Filipe Sequeira consigo no carro, que alertou que o homem poderia estar armado.

No depoimento em tribunal, Filipe Sequeira afirmou que quando ouviu, via rádio, o “pedido de matrícula” associou-o a uma “situação” que ocorrera dois anos antes. O militar contou que, cerca das 5h da manhã, o posto foi informado de que havia um carro junto a um aviário e quando Sequeira lá chegou “ligou os rotativos” e a viatura “pôs-se em fuga”. Apesar de não ter associado a uma pessoa em concreto, disse ao colega para ter cuidado. “Associei que talvez fosse um caçador, por isso avisei o meu colega que [o homem] podia estar armado”, afirmou, esclarecendo que a associação foi às “características do veículo”, semelhantes ao carro envolvido no incidente de 2014, e “não ao arguido”.

Ao longo do testemunho, Sequeira afirmou que não conhecia o arguido, mas quando confrontado com as perguntas da juíza, o militar pareceu entrar em contradição . Tendo isto em conta, a defesa de Pedro Dias pediu a “extração da certidão da gravação da totalidade do depoimento”, considerando que houve a prática de “crime de falso testemunho“.

Carlos Cruz considerou, durante as suas declarações, que Caetano estava “calmo” durante o telefonema. Apesar de não ter notado nada de estranho, ofereceu-se para ir ao local ajudar. Caetano, contudo, respondeu que não era preciso porque “o senhor em causa [Pedro Dias] estava calmo”, referindo ainda que se precisasse de alguma coisa comunicava.

Mas não houve mais comunicações. Só às 7h da manhã é que percebeu que havia algo de estranho quando lhe pediram para ir a Aguiar da Beira para encontrar o carro de Caetano e Ferreira. Foi aí que se lembrou do telefonema do colega. No caminho para Aguiar da Beira, passaram pela casa de Pedro Dias, em Vila Chã, mas, como o carro que estava lá parado não correspondia à descrição dada por Caetano, durante a chamada telefónica, seguiram.

Foram os militares da GNR Carlos Cruz, Filipe Sequeira, Luís Ribeiro e Luís Lopes que encontraram o carro-patrulha, que estava escondido numa mata junto à EN229. De acordo com Luís Ribeiro, ele e o guarda Lopes foram os primeiros a chegar junto ao carro.

“Pedi ao Lopes que fosse ele abrir a bagageira. Quando abrimos a mala, vimos lá o corpo. A partir daí, afastei-me”, contou o guarda da GNR.

Luís Lopes, no seu depoimento, esclareceu ainda que o corpo foi retirado da bagageira pelos bombeiros. Foi o militar Cláudio Carneiro, de Moimenta da Beira, que também estava no local, quem encontrou a carta de condução de Pedro Dias. No depoimento em tribunal, esta tarde, o guarda referiu que o documento caiu do “bolso esquerdo” das calças de Carlos Caetano para o chão da ambulância, onde estava a fazer manobras de reanimação ao colega. Logo nessa altura verificou que a carta de condução pertencia ao homem que conhecia “de vista” depois de ter trabalhado no posto de Arouca. Entregou-a depois à sargento Pina.

Militar encontra corpos de casal baleado em Aguiar da Beira

Na tarde desta quarta-feira foi ainda ouvido o militar da GNR Nuno Gonçalves, que encontrou os corpos de Liliane e Luís Pinto. O militar explica que se dirigiu até ao local onde foi encontrado o carro da GNR — onde foi descoberto o corpo de Carlos Caetano — para ajudar os colegas, quando encontrou uma “poça de sangue” na berma da EN229.

Nessa altura, seguiu o “rasto” de sangue no chão, enquanto ouvia “gemidos”, até que encontrou o casal. A mulher ainda estava viva. “Chamámos ambulância e contactámos a PJ”, contou o sargento, acrescentando que no local foi ainda encontrado um invólucro.

Nuno Gonçalves explicou que os corpos estavam cobertos com “fetos e giestas”, como se fosse “camuflagem”, não os deixando visíveis para quem passasse pela estrada. O corpo de Luís, referiu ainda o sargento, tinha a “camisola puxada para cima” e a sua cabeça, que estava tapada pela camisola, estava “aos pés” de Liliane. O militar afirmou ainda que o corpo parecia ter sido arrastado:

“A prioridade foi socorrer a senhora. Fizeram-se as manobras à senhora e ninguém mais entrou naquele local.”

Testemunhas deverão ser ouvidas até final de novembro

Em declarações aos jornalistas, esta manhã à porta do tribunal, o advogado da família de Carlos Caetano, o militar da GNR alegadamente morto por Pedro Dias, e de António Ferreira, que estava a fazer patrulha com Caetano, disse esperar que as testemunhas sejam todas ouvidas até 22 de novembro.

No final da manhã, Pedro Proença voltou a reforçar esta questão. “Estou convencido de que hoje se vai cumprir o calendário e que estas testemunhas vão ser todas ouvidas, o que me garante, com alguma segurança, que vamos cumprir o calendário que está previsto, que é terminar a prova testemunhal no dia 22 novembro.”

Questionado sobre o eventual depoimento de Pedro Dias, o advogado falou numa “estratégia” por parte da defesa. “Tudo aquilo que vier, se vier, será no âmbito de uma estratégia e essa estratégia poderá estar a ser delineada em função daquilo que se passa no julgamento”, afirmou Pedro Proença aos jornalistas.

A segunda sessão do julgamento ocorreu esta terça-feira. Foram ouvidas as mães de Liliane e de Luís Pinto, o casal alegadamente baleado pelo arguido na EN299 quando estava a caminho de Coimbra; o homem que terá sido sequestrado por Pedro Dias em Moldes; e uma ex-companheira do suspeito, Ana Cristina Laurentino.

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Durante a primeira sessão, que decorreu na passada sexta-feira, foi ouvido o militar da GNR, António Ferreira, que sobreviveu após alegadamente ter sido baleado pelo arguido. É a principal testemunha do processo.

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Pedro Dias esteve fugido das autoridades durante 28 dias, no ano passado, e é acusado de cinco crimes de homicídio (três consumados e dois na forma tentada), três sequestros, dois roubos e três detenções de arma proibida.

Até ao momento, o arguido não quis prestar declarações. Na passada sexta-feira, a sua advogada, Mónica Quintela, garantiu que o seu cliente iria prestar declarações durante o julgamento, sem esclarecer contudo quando isso acontecerá. E esta quarta-feira reforçou: “Ele irá falar na altura certa”.

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