Filósofa, psicanalista, linguista, semióloga, escritora. E ao longo rol de pergaminhos junta-se agora o mais inesperado de todos: agente secreta do regime comunista da Bulgária. Julia Kristeva, de 76 anos, intelectual venerada no meio académico, guru do pós-estruturalismo e dos Estudos Culturais, terá sido recrutada em 1971 como informadora do Comité de Segurança do Estado, equivalente ao KGB da União Soviética. A notícia, conhecida na semana passada, já foi desmentida pela filósofa e tornou-se o tema do momento no país de origem, a Bulgária — tal como em França, onde Kristeva vive há mais de 50 anos.

Jornalistas búlgaros contactados nos últimos dias pelo Observador dizem-se espantados com as revelações e sublinham a ausência de reações oficiais. Notam que, por enquanto, as provas documentais não permitem conclusões definitivas, mas sugerem que a filósofa aceitou este papel para proteger a família que vivia na Bulgária.

“As notícias deixaram muitas pessoas chocadas, eu incluído, porque Kristeva é uma intelectual muito respeitada aqui na Bulgária e sempre foi vista como uma opositora moral do regime totalitário”, explica o jornalista Dimitar Iv. Ganev. “Depois de ler com atenção o dossier publicado pela comissão estatal, fiquei com muitas dúvidas sobre se poderemos condenar a atitude de Kristeva”, acrescenta.

A também jornalista Alexandra Markaryan considera “estranho” que até agora nenhum político búlgaro tenha comentado o caso. “Assim que a notícia saiu, muitas pessoas criticaram Kristeva nas redes sociais de forma violenta, mas o poder mantém-se em silêncio. É como se nada se passasse”, constata. A Universidade de Sófia, onde Kristeva estudou e que mais tarde a condecorou, também não reagiu.

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Nesta terça-feira, a filósofa divulgou no Twitter um comunicado em inglês, reiterando que “nunca” pertenceu a qualquer serviço secreto e que o dossier agora conhecido é forjado. “A ilustração perfeita dos métodos utilizados por polícias ao serviço de regimes totalitários” que “criam ficheiros secretos sem consentimento” dos cidadãos.

Julia Kristeva nasceu na cidade de Sliven em junho de 1941, filha de um médico, cristão ortodoxo, e de uma bióloga, ateia darwinista. Começou por frequentar um colégio de freiras, tal como a irmã, e mais tarde mudou-se para a capital e estudou linguística e literatura francesa na Universidade de Sófia. Em 1966, foi para Paris com uma bolsa de estudo do governo francês. Diz a própria que chegou ali com apenas cinco dólares no bolso. Fez doutoramento em linguística na École Pratique des Hautes Études e trabalhou com alguns dos mais célebres filósofos e críticos do século XX em França: Roland Barthes, Lucien Goldmann, Claude Lévi-Strauss, Jacques Lacan, Michelle Foucault, entre outros. Ensinou durante décadas Universidade Paris Diderot e foi professora convidada da Universidade de Columbia em Nova Iorque.

Aproximou-se do grupo de intelectuais em torno da revista literária maoísta “Tel Quel” e em 1967 casou-se com um deles, o escritor Philippe Sollers, com que teve um filho em 1975. Sollers considera-a “a mulher mais inteligente” que alguma vez encontrou.

No documentário biográfico “Who’s Afraid of Julia Kristeva” (2017), de Iskra Angelov and Milena Getova, é descrita como uma das pioneiras do pós-estruturalismo, escola de pensamento segundo a qual a realidade é uma construção social e cultural.

[trailer do documentário “Who’s Afraid of Julia Kristeva]

Até agora desconhecia-se que a filósofa tivesse colaborado com os serviços secretos da Bulgária (o “Darzhavna Sigurnost”). Documentos de arquivo revelados a 28 de março fazem prova de que foi recrutada e trabalhou sob o nome de código “Sabina” para um departamento dedicado à recolha de informações no estrangeiro. “Estava registada e sobre ela não se exerceu pressão para que colaborasse”, declarou na semana passada Ekaterina Boncheva, da comissão que estuda os arquivos dos serviços secretos que serviram o regime comunista da Bulgária até à queda do Bloco de Leste em 1989. Estes serviços chegaram a ter 100 mil agentes e informadores e mantinham ligação estreita ao KGB, escreve a agência de notícias Reuters. No entanto, dos arquivos não constam quaisquer documentos escritos pela própria Kristeva, apenas relatos sobre a atividade que desempenhou.

Aparentemente, foi a própria Kristeva quem espoletou a revelação, ao propôr-se para o conselho editorial da publicação búlgara “Literaturen Vestnik”. A lei do país obriga todas as pessoas nascidos antes de 1976 e ligadas a órgãos de comunicação social a sujeitaram-se a averiguações sobre o passado. A comissão divulgou a informação a 27 de março e publicou o dossier na internet nos dias seguintes.

A 29 de março, no Twitter, Kristeva disse tratar-se de “informação grotesca e falsa” e de um “atentado à honra”, ameaçando processar os média que reproduzam os factos conhecidos.

Ao Observador, a jornalista Aneliya Dionisova diz que a vida de um búlgaro pode ser arruinada se se descobrir que esteve envolvido com a secreta da era comunista. “São tão fortes os preconceitos sobre quem pertenceu aos serviços secretos que muitas vezes o público nem quer saber do conteúdo dos arquivos, embora a análise cuidada dos documentos seja determinante para percebermos os factos”.

Segundo Alexandra Markaryan, não é de crer que a comissão tenha publicado documentos falsos. “Nada naquele dossier parece inventado”, diz ao Observador. Dimitar Iv. Ganev também leu os documentos e recomenda uma “boa dose de ceticismo”.

“Este tipo de colaboração era perfeitamente normal à época e quem recusasse poderia sofrer retaliações contra os familiares que se mantinham na Bulgária. Há inúmeros casos documentados de atos violentos por parte do regime contra familiares dos ‘nevuzvrushtentzi’, ou seja, aqueles que saíam do país definitivamente e que passavam a ser malvistos”, explica Dimitar Iv. Ganev. “As fontes da alegada colaboração de Kristeva são os agentes que na altura trabalhavam para o Comité de Segurança do Estado. Não há uma única página escrita por ela, a não ser cartas que trocava com a família e que eram intercetadas e copiadas pelos serviços secretos, o que significa que ela estava, ao mesmo tempo, sob vigilância.”

No dizer deste jornalista, as informações que Kristeva prestava às autoridades búlgaras tinham “muito pouca relevância” e consistiam em relatos sobre o partido comunista francês e os círculos académicos e intelectuais que frequentava.

“É possível concluir que Kristeva tentava enganar os serviços secretos”, prossegue o jornalista. “As autoridades acabaram por perceber que ela não era uma fonte de confiança e em 1973 deixaram de lhe pedir informações. A partir daí, mantiveram contactos esporádicos, um dos quais em 1976, quando Kristeva pediu autorização para que os pais tivessem um visto temporário e a visitassem em França para verem o neto recém-nascido, o que, aparentemente tinha sido recusado uns tempos antes. Se ela fosse realmente uma agente secreta não teria havido razão para essa primeira recusa”, sustenta.

A mesma interpretação tem Aneliya Dionisova, para quem o mais relevante foi ter verificado, ao ler o dossier, que a atitude de Kristeva não prejudicou a vida de quem quer que fosse.

“Não sei porque é que ela aceitou ajudar os serviços secretos, mas também é óbvio que evitava os encontros que os agentes combinavam com ela ou então dava-lhes informação insignificante de propósito”, opina Aneliya Dionisova. “Considerá-la uma agente secreta parece-me exagerado.”

Citada pelo New York Times, Ekaterina Boncheva, membro da comissão, disse ser irrelevante que “Sabina” não tenha escrito informações pelo próprio punho. “O importante é que ela tinha um cartão próprio” de informadora.

Em maio de 1973, um agente que em França fazia a ponte com Kristeva escreve sobre a decisão de “cortar o contacto” com a agente “Sabina” por esta falhar reuniões e induzir os serviços secretos em erro, diz o dossier, de acordo com os jornalistas búlgaros.

Depois de a filósofa ter feito um primeiro desmentido, a comissão que estuda os arquivos dos serviços divulgou na internet o “dossier” Kristeva

O caso parece excepcional a vários títulos. Desde logo, por incluir a divulgação pública do dossier Kristeva. É a primeira vez que a comissão, formada há 12 anos, torna pública tanta documentação sobre um só cidadão. “O interesse da opinião pública e o desmentido de Kristeva terão influenciado a decisão de publicar”, acredita Alexandra Markaryan. Até agora, só o jornalista búlgaro Kevork Kevorkian tinha tido um ficha pessoal publicada.

“No site da comissão é possível saber quem já foi alvo de verificação, se essa pessoa teve ou não ligações aos serviços secretos e que tipo de documentos existem ou se já foram destruídos, como tantas vezes acontece. Mas quem quer ler os documentos tem de se dirigir à sede da comissão, em Sófia, e lá é que pode pedir cópias”, explica Alexandra Markaryan.

Para já, que efeitos tem este caso na imagem pública de Kristeva? “Não há informação suficiente no dossier que possa ensombrar o legado intelectual de Kristeva”, defende Dimitar Iv. Ganev, para quem a relação dela com os serviços secretos se assemelha mais à de “uma vítima para com o violador”. “Espero que nos próximos tempos seja possível olhar com mais equilíbrio para esta mulher extraordinária”, diz Alexandra Markaryan.