A ideia dos brinquedos STEM (sigla em inglês para ciência, tecnologia, engenharia e matemática) tem estado nas bocas do mundo nos últimos anos, com variadíssimas propostas a chegarem ao mercado e a trazerem novas opções para ensinar as crianças através da brincadeira. Sejam pequenos brinquedos com programação simples, que permita aos mais novos darem os primeiros passos na lógica e na linguagem informática, ou outras experiências que servem como semente de curiosidade científica nos mais pequenos. Este tipo de brinquedos tem agradado também aos pais, que encontram neles um momento de partilha e de aprendizagem conjunta.

Ver a Nintendo a investir neste mercado foi uma surpresa, e não o foi por a famosa companhia nipónica não ter uma aura familiar à sua volta, mas porque vem em contraciclo com o mercado dos videojogos. Por outro lado, dizer que a Nintendo está em contraciclo com o mercado é um contrassenso, porque a empresa sempre quis marcar o seu próprio ritmo. E fá-lo desde sempre.

Numa altura em que a aposta é sobretudo em potência gráfica, em multiplayer online, realidade virtual, e que têm permitido grandes avanços técnicos e artísticos nos videojogos, ver uma das maiores empresas do género a querer mergulhar nos brinquedos STEM é também uma forma de avançar o mercado, mesmo que esta entrada no mercado STEM seja o mais low tech possível: criando produtos pedagógicos interativos a partir de cartão.

Aquilo que nos tem mantido ao longo dos anos a escrever, pensar e a ler sobre videojogos é uma militância ideológica que defende que estes e outros objetos culturais têm camadas que vão além do entretenimento, e que passa também pela responsabilidade pedagógica de quem os cria. O Nintendo Labo situa-se precisamente nesta esfera: a de utilizar as capacidades únicas da Nintendo Switch para contar histórias, mas, neste caso, o storytelling não é ficcional, é científico, exploratório e pedagógico.

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Depois de termos passado uma semana a montar, brincar e a aprender com os dois kits disponíveis no mercado, confirmámos as quase certezas que surgiram na antevisão que fizemos há alguns meses. O direcionamento do Labo, assim como grande parte dos produtos da companhia, não é tão estanque quanto possa parecer. Dizer que o Labo é um produto para crianças é roubar-lhe a multiabrangência que tem no seu âmago e a diversidade de público para o qual foi criado. O Nintendo Labo está concebido para ter algo de apelativo a pessoas com gostos, vontades e idades diferentes, e isso é assumido conceptualmente pelos três personagens virtuais que nos acompanham em qualquer um dos kits.

No meu caso, com um filho de 5 anos que me acompanhou na experiência do Labo, percebemos que cada um de nós queria usufruir de momentos diferentes do processo. Se eu consegui divertir-me com as largas horas de instruções e montagem das peças de cartão, ele observava e ansiava pacientemente por poder jogar com aqueles brinquedos que se materializavam aos poucos na nossa mesa.

O cartão que se transforma em brinquedo

Dos três momentos que compõem o Nintendo Labo, a montagem é aquela que se calhar mais apela aos adultos. Não que as instruções de montagem sejam crípticas, muito pelo contrário. A Nintendo fez um esforço de tornar toda a sequência de instruções em algo divertido, com animações  precisas e frases que aligeiram esta componente de “tutorial”, a roubar-nos sorrisos com o humor e a autoconsciência do nosso “instrutor”.

O grande problema da montagem dos brinquedos é o tempo que demoram a terminar. O Kit Robot demorou cerca de três horas e meia para finalizar, o que é muito mais do que qualquer criança, por mais paciente que seja, consegue estar focada numa mesma tarefa. O resultado final é surpreendente, mas o processo é algo que recairá mais sobre os mais velhos do que sobre os mais novos.

À medida que íamos pegando nas quase vinte placas de cartão que vê no Kit Robot e de lá destacávamos as peças, tornou-se mais do que óbvio que a conceção destes objetos são momentos altos da engenharia de papel e do design, utilizando cartão. Já o sabíamos por conhecermos bem alguns dos componentes do Kit Sortido (que contámos na antevisão há uns meses), mas a espécie de exoesqueleto de robô que criámos apenas com cartão e cordel é verdadeiramente brilhante.

O processo de montagem tem o condão de nos alegrar à medida que vamos unindo aquilo que são apenas peças isoladas de cartão, que resultam num brinquedo reconhecível e funcional, como um bolo que vai tomando forma a partir de farinha e fermento.

Um dos preconceitos que surgiram em torno da ideia do Nintendo Labo um pouco por todo o mundo remetia para a fragilidade de um material como o cartão. Mas não demoramos muito a perceber que, estruturalmente, cada um dos Toy-Cons (os brinquedos de cartão do Labo) foi criado para ser o mais robusto possível, com os encaixes e reforços unicamente de cartão a tornarem cada um destes brinquedos verdadeiramente sólidos para serem usados enquanto periféricos de videojogos.

Esta lógica DIY quase herdada do nosso hábito contemporâneo de montarmos os nossos próprios móveis tem apenas um senão no Labo: se os objetos finais montados são uma delícia de se ver e usar, acabam por ocupar demasiado espaço físico em nossa casa. Com um exímio trabalho de design e metodologia de montagem de cada um deles tão expresso pela sua equipa de desenvolvimento, fica a faltar apenas  algo simples: instruções de desmontagem, que nos permitam guardar os brinquedos a ocupar o menor volume possível.

Por outro lado existe uma sub-possibilidade para toda a família neste ponto, que é o da personalização dos brinquedos de cartão, que com a sua cor base acastanhada permitem-nos pintar as superfícies a nosso bel-prazer, colar recortes, autocolantes, ou quaisquer outros materiais, trazendo uma componente artística para toda a família.

Depois do brinquedo, o videojogo

Cada um dos Toy-Cons tem um videojogo associado, que explora as potencialidades enquanto periférico de cartão. Se na antevisão que fizemos há uns meses ficámos com a ideia de que a componente videojogo de todo este “pacote” era a camada menos “importante”, agora que tivemos acesso total aos Kits Sortido e Robot percebemos que tínhamos razão. Os videojogos associados são meras abordagens casuais de transição em interface da utilização dos brinquedos em cartão, e são, de longe, o componente mais insípido de todo o pacote. Assemelham-se, e muito, a meros exemplos do que é possível fazer com o brinquedo de cartão e a Nintendo Switch.

O caso do Kit Robot é talvez o mais óbvio neste aspeto. Quase quatro horas de montagem (sem contarmos as que podemos usar para personalizar/pintar o próprio brinquedo de cartão) e que tem um conteúdo em videojogo que se esgota em menos de duas horas. A forma de solucionar isto no futuro talvez passe por permitir que exista criação de pequenos jogos/protótipos que utilizam os Toy-Con para expandir o seu tempo de vida enquanto periférico de videojogo. É que, do pouco que brincámos com o exoesqueleto robótico de cartão, quase que deu vontade de poder ter, no futuro, um jogo dedicado, mais “a sério” e que o utilize de forma simbiótica.

É que dentro de tudo o que o Labo faz de forma exímia nos dois Kits disponíveis agora para compra, a componente de videojogo é de longe a mais superficial.

A descoberta e a aprendizagem

Se a parte da montagem vai apelar a muita gente, em especial “aos mais crescidos”, os videojogos incluídos com a evidente superficialidade vão esgotar-se rapidamente, mas é esta componente de exploração e experimentação a verdadeira joia da coroa de cartão do Nintendo Labo, e a verdadeira componente STEM que justifica na perfeição o investimento considerável em cada um dos Kits disponíveis no mercado.

Depois de montarmos cada um dos Toy-Con podemos explorar como é, na realidade, o seu funcionamento, como são utilizados os giroscópios e as câmaras dos Joy-Cons como explicámos aqui, e que dão uma visão pragmática do interface entre brinquedo de cartão e a consola de videojogos.

Mas esta mostra do que está por detrás do pano não é apenas a revelação dos truques do mágico. É a porta de entrada para a Garagem literal incluída no Labo e que incentiva quem o utiliza a criar novos objetos e a alterar os que já existem, com a possibilidade de programar as ações dos Joy-Cons e da consola, passando também ideias simples de programação e de linguagem e lógica.

As possibilidades de personalização de novos brinquedos têm nesta Garagem do Labo uma excelente partilha familiar num momento de primeiros passos na programação. A forma como a linguagem simplificada utiliza nódulos de programação é uma abordagem fácil, visual e reconhecível de passar a ideia da lógica, forma e função subjacente ao código informático.

A abertura das portas para as gerações de amanhã

Com a tremenda abertura que o Nintendo Labo tem enquanto momento de partilha e aprendizagem é redutor, como afirmámos, resumi-lo a um mero gimmick da Nintendo. É também um erro falar dele fora do seu espectro de direcionamento, sendo o mercado gamer, por definição, aquele que está fora da sua compreensão. O Labo é um objeto familiar mas não infantil, é uma experiência com múltiplas abordagens e que serve para quem gosta de construções, para aqueles que gostam de personalizar as suas criações, e para aqueles que querem compreender a tecnologia e saber como ir mais longe. A parte de videojogo é pano de fundo, é o equivalente simplista dos finais de tutoriais dos livros de introdução às linguagens de programação, e não é, por si só, um elemento de venda.

O Labo tem problemas de volume, se tivermos em conta que precisa de ser guardado, e um novo olhar da equipa que o desenvolveu, que dá conselhos sobre como guardá-los com o menor volume possível é algo que só expande a possibilidade de revisitarmos e remontarmos cada um dos Toy-Con. Se os jogos são quase vazios de conteúdo e o laboratório científico que lhe dá nome justifica as dezenas de euros do seu custo (69,99 euros o Kit Sortido 1 que inclui o piano, cana de pesca, carros telecomandados, mota e casa, e 79,99 euros o Kit Robot), e que expande de forma virtualmente infinita a utilização de cada um destes componentes.

No nosso país, o sucesso de produtos como os da Science4you são prendas habituais para muitas crianças. O Nintendo Labo quer chegar a esse público e incluir o resto da família, já que diferentes pessoas podem usufruir dele de formas distintas. E fá-lo com uma das formas mais brilhantes, educativas e simples que poderíamos encontrar. O Nintendo Labo é obrigatório para todos os possuidores de uma Nintendo Switch, cujo agregado familiar tenha interesses diversos. Não o restrinjam como brinquedo educativo para crianças porque aqui há conteúdo para praticamente toda a gente. No meu caso, deem-me estes geniais brinquedos de cartão para montar que eu digo-vos como posso passar horas distraído sem ver o tempo a passar.

Ricardo Correia, Rubber Chicken