R2-D2 e C-3PO? Bud Spencer e Terence Hill? JVP e Paulinho Santos? Nada disso, a melhor dupla deste fim-de-semana é futebol e cinema. Ao vivo e a cores, num cinema perto de si. Em Lisboa, só em Lisboa. É o primeiro festival de cinema sobre futebol na capital. Começa hoje às 2130 com “Até Lá Abaixo”, acaba domingo às 1845 com “George Best, All by Himself”.
Best, George Best. Um dos maiores fenómenos de sempre, seguramente o mais pitoresco, cheio de rock n’roll na alma. Os seus dribles, dentro e fora do relvado, perduram na história como os mais audazes, os mais arriscados, os mais sensacionais, os mais atrevidos. Os mais. A palavra mais está constantemente associada a Best. Porque ele dá mais espectáculo que qualquer outro. Se fosse convidado pelo realizador John Huston para entrar no filme “Fuga para a Vitória” (1981), Best marcaria o 4-4 dos aliados e defenderia, claro está, o penálti dos nazis no último minuto. Qual Pelé, qual Stallone, qual quê, Best só há um e mais nenhum. Aliás, não é por acaso que os norte-irlandeses usam e abusam da piada Maradona good, Pelé better, George Best.
Best é mesmo o melhor. Para os norte-irlandeses e não só. Basta recordar o episódio do quinto Beatle, alcunha dada pela imprensa portuguesa na ressaca de um impensável 5-1 do Manchester United na Luz. Estamos em Março 1966, é a segunda mão dos quartos-de-final da Taça dos Campeões. Na primeira, em Old Trafford, o Benfica só perde por 3-2, golos de José Augusto e José Torres, este último a festejar de maneira deveras curiosa, a correr da baliza até ao meio-campo com os braços levantados e a bola entre as mãos. Pelo meio, Herd, Law e Foulkes ditam a lei do factor casa. Em desvantagem por um golo, é legítimo o sonho de virar a eliminatória. Os adeptos acorrem em massa, como é habitual (naquela altura, os jogos em território nacional nem são transmitidos pela RTP, apenas os do estrangeiro), e enchem a Luz, ávidos de ver mais um recital dos encarnados. E assim é – o problema é que o United veste-se de encarnado e o Benfica de branco.
O início do jogo é perturbador para o Benfica. Aos seis minutos, livre para o United, cabeceamento de Best e 1-0. Aos 11′, o guarda-redes inglês repõe a bola para o meio-campo, onde Best domina com classe e finaliza com categoria, 2-0,após ultrapassar três adversários num abrir e fechar de olhos. Daí para a frente, Best é um espectáculo só, capaz de calar o inferno da Luz, da acção mais insignificante, como um simples lançamento lateral, à mais trabalhada, como os sucessivos dribles na marca de penálti. Ao intervalo, os jornalistas entram no balenário das duas equipas e constatam significativas diferenças nos métodos: os ingleses bebem cerveja destemperada com sumo de laranja e gin, os portugueses sumos e chá. Com álcool no corpo, Best continua à solta. Na segunda parte, alarga o seu reportório através de corridas, fintas e remates, dois deles defendidos in extremis por Costa Pereira e evitar um resultado mais desnivelado. Diz o Diário de Lisboa: “Ganhou quem teve o Best. Foi ele, foi o beatle. Foi o garoto de 19 anos de cara de menina e farta cabeleira. O fantasma que atarantou a defesa do Benfica, imitando o macaquinho à solta dentro de uma loja de vidros, sem dó nem piedade. E como corria o simpático guedelhudo. Passava por Germano e Coluna a dizerlhes olá como se fosse uma bala da carabina. Incansável. Progidioso. Formidável.” Os anos passam e Best ainda se lembra dessa noite, logicamente. “Foi o clique da minha carreira, o jogo que me revelou para toda a Europa. E os jornais portugueses chamaram-me quinto Beatle, alcunha que colou até sempre.”
[o trailer de “George Best: All By Himself”:]
Saltamos quatro anos e já estamos em Fevereiro 1970, dia de um inesquecível Northampton-Manchester United para a Taça de Inglaterra. O curioso é que Best nem está para jogar nessa tarde, à conta de um arrufo no dérbi vs City para a Taça da Liga, em Dezembro. É daquelas coisas, é ou não é penálti? Best reclama insistentemente, o árbitro manda seguir. Desagradado com a falta de atenção, Best agarra num pedaço de lama do pseudo-relvado de Old Trafford e atira-lhe ao peito, além de vociferar uns quantos palavrões pelo meio. Vale a intervenção de Tony Book, capitão do City (é importante este nome, já vai perceber o porquê), e a situação fica por ali. Acontece que a federação não perdoa a má educação e suspende Best por seis semanas.
Nesse período, o extremo só vai aos treinos. Quanto vai. É o Best bipolar: ora se aplica de uma forma nunca vista, ora falha miseravelmente só porque sim, só porque gosta da noite, só porque devora champanhe, só porque coiso-e-tal com as mulheres. Imagine-se, a sua companhia de então para essas actividades extra-curriculares é o actor Michael Caine, curiosamente uma das figuras do “Fuga para a Vitória”. No final de Janeiro, a sua vida desportiva está por um fio. Best admite-o sem rodeios à comunicação social, após um treino. “Estou cansado desta vida”. Sim, desta vida sem bola nem competição. Sem dribles nem lama. Sem aplausos nem dramas. “Tenho de começar a jogar, senão perco-me.” Atento, o treinador Wilf McGuiness convoca-o para a deslocação a Northampton. No balneário, dá-lhe a camisola número 11. Best promete uma recompensa alto e bom som. “Rapazes, seis semanas sem jogar igual a seis golos.” O pessoal ri-se e continua a equipar-se. Quando entra no Country Ground (agora apenas e só um campo para jogos de críquete), uma multidão de oito mil pessoas dedicam-lhe uns cânticos cómico-provocadores: George Best Superstar/Walks like a girl/And he wears a bra (George Best Superstar/Anda como uma menina/E usa um soutien).
Mal soa o apito para o início do jogo, Best exibe-se a grande altura e cumpre o prometido: um, dois, três, quatro, cinco, seis. Seis golos. É uma exibição deslumbrante, do mais artístico que há. Dos seis golos, três com o pé direito, dois com o esquerdo e um de cabeça. Na baliza, quem? Kim Book, irmão mais novo de Tony, o tal capitão do City. Ele há coincidências. A caminho do autocarro para a viagem de regresso a Manchester, o plantel do Northampton apanha Best no corredor e oferece-lhe a bola do jogo, devidamente autografada pelos vencidos, todos eles orgulhosos em presenciar um fenómeno raro. O defesa-direito Roy Fairfax, encarregue de marcar Best, até profere a lendária frase captada pelos jornalistas. “O mais perto que consegui ficar perto dele foi quando lhe apertei a mão no final.”
Passam-se seis anos e Best lá se aguenta. Já tem 30 anos e a idade pesa, sobretudo para alguém cujo apetite por noite, champanhe e mulheres (não necessariamente por essa ordem) continua na mó de cima. Muito bem, estamos em Outubro 1976 e é dia de Holanda-Irlanda do Norte para o apuramento do Mundial-78. Em Roterdão, só se fala de Cruijff, então com 29 anos, figura maior do Barcelona e já eleito três vezes o melhor jogador da Europa (1971, 1973, 1974). É um tempo em que o futebol ainda não goza deste estatuto insensato de prime donne nem de seguranças para impedir o que quer que fosse. È tudo à la lagardère. Por isso mesmo, os jornalistas seguem com a equipa no mesmo autocarro, do hotel para o estádio. É aí que o inglês Bill Elliot, do Daily Express, se senta ao lado de Best. “Já acompanhava o Best no dia a dia do Manchester United e ele ofuscava nomes como Bobby Charlton e Denis Law. Era um personagem sem igual. Percebi imediatamente isso no primeiro contacto, quando lhe pedi o número de telefone de casa. Todos os outros jogadores do plantel deram-me um, o Best deu-me 19. O da casa da mãe biológica, o da casa da mulher que cuidava dele em Manchester, que ele considerava uma espécie de mãe, os dos bares onde costumava ir, os dos melhores amigos e alguns, poucos, de mulheres.”
É ele, Bill Elliot, o contemplado no lugar ao lado de Best no autocarro para a banheira de Roterdão. “Cruijff estava no auge. Best não. Perguntei-lhe o que achava do holandês e ele respondeu-me ‘outstanding’ [fora de série]. ‘Melhor que tu?’,arrisquei. Ele olhou para mim e deu uma gargalhada. ‘Estás a brincar comigo, não estás? Eu digo-te o que vou fazer ao Cruijff esta noite. Vou fintá-lo na primeira oportunidade que tiver’, e ambos nos rimos. Um par de horas depois, os jogadores norte-irlandeses foram anunciados um a um. Pat Jennings, o guarda-redes, foi o primeiro a sair do túnel para o relvado. Best foi o último. O megafone soltou ‘e agora o número11, Geeeeeorgie [grande pausa] Best’. E ele lá apareceu, acompanhado por uma loura espampanante, com uma rosa na mão. Era impossível não dar espectáculo, por isso Georgie aproximou-se dela, tirou-lhe delicadamente a rosa, beijou-lhe a mão como um cavalheiro e correu para o meio do campo com o braço bem levantado. E o público, mais animado que nunca, aplaudiu.”
E agora? “Aos cinco minutos, Best recebeu a bola no lado esquerdo. Em vez de a cabecear para iniciar um ataque pelo seu extremo, dominou-a com o peito e foi para dentro. Fintou três holandeses até chegar a Cruijff, no lado oposto do campo, o direito. À frente de Johan, mexeu os ombros duas vezes para um lado e para o outro, como se fosse fintar, e, enquanto isso, colocou-lhe a bola entre as pernas, recolhendo-a de seguida, com o punho semi-erguido. Só alguns jornalistas entenderam aquilo. Eu era um deles.” Cruijff não leva a mal o atrevimento de Best. “Lembro-me desse lance, sim: dentro do campo, ele era um louco são; fora dele, um bom rapaz. No Verão desse ano [1976], passámos as férias no mesmo sítio, em Marbelha. Aliás, esse Verão e muitos outros. E depois ainda nos encontrámos nos EUA.”
Olha que bem, EUA. Vem mesmo a calhar, porque a última história de Best é em San Jose, nos Earthquakes, em 1980. Conta António Simões, o Magriço do golo de cabeça ao Brasil em Old Trafford. “O treinador principal era o Bill Foulkes, velha glória do Manchester United. Eu era o seu assistente dele. Na equipa, duas figuras: o George Best e o Vítor Baptista.” Uischhhhhh. “O Best esteve lá a época toda, o Vítor só uma semana ou duas. O Vítor exigiu à direcção um Corvette, um carro que não estava contemplado no contrato que acabara de assinar, mas ele viu o Corvette e desejou-o à força. Começou logo ali um problema, porque o clube não estava muito interessado nisso. A verdade é que o Vítor acabou por ficar com o carro.” E? “Nem houve tempo para haver confusão porque o Vítor rapidamente apanhou o avião para Portugal. Não se conseguiu adaptar e dava sinais de um comportamento estranho que não o ajudou nada. Joguei com ele no Benfica e lembro-me de ter dividido o quarto com ele, a pedido do Fernando Neves, do departamento de futebol. Aceitei, claro, até porque era o capitão de equipa, mas não era nada fácil. O Vítor tinha a tendência para algum desequilíbrio no seu reino. Nunca foi má pessoa nem deselegante, mas vivia no seu mundo sem se preocupar com os outros. Levei-o para os EUA para tentar ajudá-lo mas não deu.”
Sobra Best. “O Vítor era uma peça, lá isso era. Agora, não fazia cócegas ao Best” Como? “Bem, Best era imparável em tudo. Nem lhe conto. A quantidade de vezes que ficávamos de boca aberta e de queixo no chão com os seus truques. Ele vulgarizava qualquer um com um simples toque na bola. Só era preciso que aparecesse nos treinos”. A odiseeia continua, pelos vistos. “O Best fazia coisas em campo absolutamente geniais, e até nos treinos, mas portava-se de uma maneira pouco profissional fora dos relvado. Certa vez, jogámos longe de casa e marcámos uma hora para nos encontrarmos a caminho do aeroporto. O Best não apareceu. Nós telefonámos, telefonámos, telefonámos e nada. Fomos para o aeroporto. Última tentativa em matéria de ligações. Atende a mulher dele, que também não sabe dele. Era maluco, muito mais que o Vítor. Claro que tivemos de ir jogar sem ele, e atenção que ele tinha jogado no Manchester United com o nosso treinador [Bill Foulkes], mas não havia maneira de o meter na ordem. Ele vivia muito da sua vida social. Era um estilo muito próprio e vincado. Já ninguém levava a mal.”
Ficamo-nos por aqui: Best é tão bom que ninguém leva a mal. Como o filme de domingo, no Museu do Desporto, para o fecho do primeiro festival de cinema sobre futebol em Lisboa.