Título: A História Natural de Portugal em Domingos Vandelli
Autor: João Cabral
Editora: Colibri
Páginas: 344
Preço: 20 €

A História Natural de Portugal em Domingos Vandelli, de João Cabral, foi publicado pela editora Colibri

O bicentenário do Jardim Botânico da Ajuda — inicialmente Jardim Real de Lisboa, com milhares de plantas vindas de todos os continentes, “uma miniatura do mundo vegetal terrestre” (p. 184) — traz à atualidade a figura do italiano Domenico Vandelli (1735-1816), que veio para Portugal com 29 anos e aqui ficou até ao fim da sua longa vida de naturalista empenhado. A ele se deve igualmente o primeiro projeto do jardim botânico da Universidade de Coimbra, de que foi professor de 1772 a 1791, e aí fundou o respetivo museu de história natural com base nas suas coleções pessoais. Domenico também escreveu uma mão-cheia de memórias, tratados e dicionários de hoje reconhecido pioneirismo para a sua especialidade e época. Deixou inédita “uma das suas obras-chave” (p. 6), um trabalho de 1771, que só se tornou conhecido e estudado (sobretudo quanto à flora e fauna do Brasil) desde que, há pouco, foi publicado em-linha pela Biblioteca Nacional, a que pertence.

Resultante duma tese académica — marcada, portanto, por todos os requisitos formais de praxe, entre os quais um enquadramento histórico geral que serve de prova de que a lição foi estudada — o livro demora cem penosas páginas a percorrer o iluminismo da Encyclopédie, do sueco Lineu e seus discípulos viajantes ou dos franceses Buffon, Lamarck e Rousseau, ou a focar os acontecimentos mais marcantes dos reinados de D. José I e de D. Maria II (respetivamente 1751-77 e 1777-92), como a reforma do ensino e a criação de academias, grandes bibliotecas e sociedades científicas, Sebastião José de Carvalho e Mello, António Nunes Ribeiro Sanches e Luís António Verney.

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A descoberta de “novos mundos” e as “viagens filosóficas” que se lhe seguiram em finais do século XVIII — financiadas por monarcas, universidades e privados ilustres — forçaram revoluções científicas em muitos domínios, desde logo o da própria taxonomia biológica, que será determinante. Levantamentos quase-estatísticos, “mapas” e “descrições” nacionais, como os de João Baptista de Castro (1762-63), do beneditino alcobacense Frei Manuel de Figueiredo (1788), e relatos de viajantes como os germânicos J. F. Link e J. C. Hoffmansegg, também favoreceriam o fomento agrícola e pecuário e outros progressos económicos e científicos, apesar das limitações conceptuais que muito mais tarde lhes foram assacadas. João Cabral procede, de resto, à transposição possível das designações vernaculares desses “inventários” para as latinas de Lineu adotadas por Domenico Vandelli, tanto de plantas medicinais como de peixes e flora espontânea autóctones do Portugal continental.

Da mesma maneira que verifica a sua ocorrência em dicionários de língua materna ou em posterior bibliografia de flora farmacêutica e alimentar, como o homónimo tratado de 1825 de Jerónimo Joaquim de Figueiredo, vai corrigindo erros ou generalizações taxonómicas de uns livros e de outros ou presta atenção cuidada à obra do farmacêutico, boticário e carmelita descalço Frei Cristóvão dos Reis, que aos 62 anos publica as suas Reflexões experimentais metódico-botânicas feitas com empirismo sobretudo no norte do país. Isto explica a quantidade de “nomes regionais, locais ou mesmo pessoais” (p. 118) ou as descrições morfológicas de segunda mão que tornariam árdua ou inconclusiva a identificação, pelo estudioso atual, de plantas e animais tidos como terapêuticos, sejam eles autóctones ou não (como a língua-de-cobre litorânea ou a jalapa e a erva-formigueira mexicanas), muito embora o velho Reis também tivesse compulsado obras em latim de tratadistas pré-lineanos.

A famosa expedição à Península Ibérica de Link e Hoffmansegg tinha como finalidade objetiva a publicação duma Flore Portugaise — de que só saíram dois volumes, aliás de data incerta e afastados entre si por um decénio ou mais (algures entre 1809 e 1840) –, mas o relato da viagem de três anos que nos deixaram também dá muitas indicações acerca da paisagem portuguesa à época da independência do Brasil. (Deixemos de lado, por um momento, o caso admirável de intrigante de estes escritos desta dupla de viajantes terem tido em 2015 uma edição portuguesa, resultante da tese de doutoramento de Nuno Gomes Oliveira do ano anterior, que é omitida na bibliografia deste livro). Cabral avança livro alemão adentro como quem faz uma volta de reconhecimento do país, beneficiada pelo cotejo com o que os autores haviam observado na vizinha Espanha ou noutras partes da Europa que conheciam melhor. Hábitos alimentares portugueses intimamente relacionados com culturas regionais ou estatutos sociais diferenciados, e outras informações sobre biodiversidade e costumes são de grande interesse para geógrafos e historiadores, mas este livro — pela primeira vez publicado entre nós no ano 2005!!! — também é importante comentário ao estado das ciências e das instituições científicas do nosso país.

Os alemães visitaram a Universidade de Coimbra, fazendo rasgados elogios ao trabalho de Félix de Avellar Brotero (1744-1828), que conheceram “minado pela tristeza e pela melancolia” (p. 152) causadas por Vandelli e Alexandre Rodrigues Ferreira (“um homem sem erudição”, sic.), e depreciando num primeiro momento o italiano. João Cabral admite, no entanto, que as plantas reportadas por Link que faltam aos trabalhos daquele (quadro 4, pp. 166-68) têm “uma distribuição muito limitada ou relativamente restrita no território nacional”, lugares que o italiano pode não ter visitado, mas também reconhece que o correspondente, discípulo e amigo de Lineu, quase trinta anos mais velho do que ele, coletou um “número muito maior de espécies” que os naturalistas germânicos.

Embora deixasse de parte “espécies lineanas de flora espontânea muito vulgares em Portugal, como Cistus monspeliensis L. e Erica australis L.”, informa Cabral, Domenico Vandelli tinha ao seu serviço, no Jardim Real de Lisboa e no adjacente museu de história natural, quatro discípulos contratados especificamente para fazerem recolhas nos territórios ultramarinos, além de cinco desenhadores na respetiva casa do risco para representarem plantas, sementes e bichos do Brasil — um notável empreendimento que dava expressão plástica às recolhas operadas pela extensa campanha amazónica de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-92), mas em parte se haveria de perder, por falta de armários de pinho para distribuir “o que ainda estava fechado em caixões” (p. 171), depois de se terem corrompido os insetos, “por não estarem expostos à vista”.

O Jardim Real de Lisboa, muito recentemente criado (1768-71), deve ter sido tão dispendioso — pondera Cabral, que o classifica como “tarefa gigantesca, em termos económicos, humanos e logísticos” (p. 184) — que Sebastião José fixou formidáveis restrições orçamentais ao jardim botânico da Universidade de Coimbra tal como havia sido proposto em 1772 pelo sábio italiano, razão pela qual os trabalhos de delimitação mural, terraplenagem, canalizações, construção de armários ou estufas, e as próprias plantações demoraram por grosso quase duas décadas. Até o pagamento a Vandelli pelas suas coleções naturais para o museu académico, iniciado em 1778 (compra essa proposta em 1772), só seria concluído pela Universidade quatro anos depois.

Apesar de tudo isso, foi em Coimbra que Domenico Vandelli escreveu a sua intensa obra científica, a qual caiu abruptamente após a sua jubilação académica e o regresso a Lisboa em 1791, como diretor do Real Museu e Jardim Botânico da Ajuda. “Afrouxa na cultura da ciência, envelhece, decai com rapidez”, irá escrever — talvez com alguma severidade — Ruy Telles Palhinha na Revista da Universidade de Coimbra em 1945. Cabral escusa-se, é certo, a abordar a vida e a obra do italiano após aquela data-charneira, porém importa lembrar que Vandelli havia sido um dos sócios fundadores e mais pró-ativos da Real Academia das Ciências em 1779, à qual apresentou estudos visando o desenvolvimento agrícola e industrial do país e colónias tendo por base recursos naturais rigorosamente elencados e um comércio livre e dinâmico. Ele próprio foi sócio da primeira fábrica de louça de pó-de-pedra, a fábrica Cavaquinho, de Gaia (1786), depois de ter sido dono duma outra, de cerâmica, em Coimbra (p. 180).

O autor comenta em capítulo específico e algo resumidamente “a contribuição de Vandelli para o conhecimento da história natural do reino”, nitidamente concentrada no início e depois no fim da década de 1780, e sobretudo demora-se no exame do “precioso manuscrito” de 1771, cujo prólogo traduz em apêndice deste livro. O trabalho científico — e editorial — de Domenico Vandelli é todo um work in progress que vai descobrindo e catalogando novas plantas agrícolas e ornamentais, insetos e moluscos, descreve melhor outras já classificadas ou reporta animais exóticos que vivem em quintas e jardins do nosso país. Conhecer as propriedades, usos económicos e medicinais das plantas é um processo longo no tempo e feito a várias mãos, numa rede ou comunidade internacional de cientistas e jardins botânicos, mas também de desenhadores-gravadores e tipógrafos-editores que a todo o tempo disputam entre si a primazia de epítetos e diagnoses, a vantagem utilitária de espécies recém-chegadas à Europa e as exigências da sua adaptação a climas locais e à qualidade agrícola dos solos.

Mas o naturalista também escreve sobre a decadência da agricultura portuguesa e os meios e modos necessários à sua reabilitação e ao provimento alimentar de toda a população (para o qual espécies importadas, como a batata e o arroz, seriam decisivas), evitando-se o êxodo das gentes rurais para os maiores centros urbanos, em 1789, e debruça-se ainda sobre problemas industriais como o de matérias-primas alternativas ou adicionais (evitando a respetiva importação) para o fabrico de papel, para a tinturaria pré-química, para a produção de… Chapéus.

O exaustivo trabalho comparativo entre tantos elencos botânicos, que discriminam variedades de plantas exóticas, plantas tintureiras, árvores ornamentais, arbustos altos e muito mais, permite também fazer uma “reconstituição da paisagem natural” duma certa época e sua clara exigência económica — como sucede com as azinheiras, os sobreiros e os castanheiros “deixados à natureza e ao acaso” no juízo de Fragoso de Sequeira em memórias económicas académicas de 1790 (cit. pp. 246-47). Se outros viajantes, como o milanês Giuseppe Gorani, escreveram sobre “a corte e o país” páginas que pelas suas descrições deixam indicações sobre o estado dos campos e a vegetação existente aqui e ali, os registos portuários também dão dados preciosos sobre o trânsito interno e externo de muitos produtos, como a castanha e o figo, muito consumidos, ou o esparto utilizado em manufaturas do Algarve que o importavam da Almeria espanhola, por não haver por cá o suficiente. E João Cabral também diz que a atenção especial que Domenico Vandelli deu — desde que chegou ao nosso país — ao estudo dos peixes em Portugal, incluindo os de água doce, terá a ver com a “grande abundância e variedade que se consumiam então” — como vai notar outro viajante contemporâneo, o pastor protestante sueco Carl Israel Ruders, indicando que “o melhor peixe é quase todo açambarcado por conta dos numerosos conventos”. Vandelli foi também “o primeiro naturalista que se ocupou dos moluscos portugueses” (cit. p. 278) e pioneiro nos estudos dos nossos insetos.

Tremenda actividade científica não podia ter sido imune a erros, e João Cabral admite que Domenico Vandelli falhou de 10 a 20% ao atribuir estatuto de nativas a espécies de plantas e animais que observou no nosso país, algumas das quais não chegariam até nós — o que lhe parece “perfeitamente aceitável” nos primeiros trabalhos, mas já não nos últimos, dada a profusão de bibliografia internacional que cresceu nas décadas final do século XVIII. Seja como for, o italiano ajudou como ninguém a colocar Portugal no atlas da história natural, e fê-lo de um modo “inovador, vanguardista e abrangente” — algo que o próprio Lineu reconheceu, admirando-o como “descobridor de novidades”.