Enviado especial do Observador à Rússia (em Bakovka, Moscovo)

Autoestradas e vias rápidas à parte, existem algumas parecenças nos últimos dois quilómetros entre o Centro de Treinos do Saturn, em Kratovo, onde a Seleção Nacional está concentrada, e a Academia do Lokomotiv, em Bakovka, que serve de quartel general para o Irão. As curvinhas em “L”, as árvores em série, a estrada apertada onde só passa um carro e meio em vias com dois sentidos. Os jornalistas ainda estão nessa altura à porta, na maioria ou de Portugal ou de Espanha, mas não demora muito até chegarem os iranianos. Mais, mais e cada vez mais. A cumprimentarem-se, como é tradição, com três beijos na cara. Tudo pronto para arrancar para dentro e poder aproveitar parte da tarde para falar na nossa língua. Mas não foi a primeira vez do dia.

De manhã, para andarmos um pouco em contraciclo com o trânsito, aproveitamos a sala de imprensa do estádio do Spartak para poder desmontar a trouxa antes de seguir para o que estava agendado. O media centre está vazio. Vazio, mesmo. Mas para parar um bocado antes de uma viagem (mais uma) de meia hora, está perfeito. A Otkritie Arena é uma surpresa, com uma construção diferente do normal, mas o que mais impressiona é mesmo a enorme estátua de Spartacus que dá outra imponência a toda a infraestrutura e avisa quem lá vai que só os verdadeiros guerreiros poderão sair por cima. À saída, hora de Yandex, a aplicação para pedirmos a nossa boleia até Bakovka. “É português?”, perguntam ao nosso lado. “Olá! Precisa de ajuda?”.

Anna é uma das responsáveis do centro de imprensa que recebeu na véspera o Argentina-Islândia, na altura a maior surpresa do Mundial até ao momento (antes da derrota da Alemanha com o México). A mãe, como nos começa a contar, está em Portugal há pouco mais de dez anos, depois de ter casado com um português que conheceu lá. Mostra-se apaixonada por qualquer coisa que esteja ligada ao nosso país e também por isso decidiu aprender a falar a língua. Com um professor “especial”, o jornalista José Milhazes. O resto da conversa fica prometido para terça-feira, altura em que haverá um Polónia-Senegal. “Sim e que Portugal possa ficar em primeiro para continuar a jogar em Moscovo”, atira, conhecendo o caminho que os comandados de Fernando Santos poderão ter caso vençam o grupo B (oitavos em Moscovo, quartos em Sochi, regresso a Moscovo).

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O quartel general é mais pequeno, mas tem tudo o que é necessário. Basicamente, parece feito à medida. Um primeiro andar onde ficam as salas de reunião e refeição, um segundo andar para os jogadores, um terceiro andar para técnicos e staff. Também há o ginásio, a zona de lazer, a piscina. Mais importante que tudo, o ambiente é bom, de confiança. E não muda por ser Oceano a falar e não Carlos Queiroz, como sobretudo os espanhóis desejavam. Aliás, a primeira abordagem com o adjunto português não podia ser mais próxima. “Ainda te lembras deste golo?”, perguntam. “Claro que sim! Marquei o último golo. E o penúltimo!”, diz o antigo internacional. A imagem, essa, tinha a última festa do Estádio de Atocha, onde a Real Sociedad jogava no início da década de 90 quando o médio estava nos bascos antes de passar para o agora mais conhecido Anoeta. “Éramos uns chavales“.

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Enquanto Oceano fala, os jogadores vão entrando num dos dois relvados e junta-se numa roda para dar aquele grito de guerra que neste caso até assusta, num ritual que é comum nesta equipa iraniana que surpreendeu pela positiva no primeiro encontro no Mundial, após ganhar por 1-0 a Marrocos. “Começámos com o pensamento de que era possível chegar mais longe e nada mudou, sendo que sonhamos sabemos que temos três equipas muito complicadas no grupo, Marrocos incluído. Colocaram-nos muitos problemas, ganhámos e continuamos a acreditar”, refere como introdução, antes de abordar o encontro de quarta-feira com a Espanha: “No futebol não há segredos, todos nos conhecemos e eles sabem que o Irão é uma equipa que luta até ao fim”.

Está bem-disposto o antigo jogador de Sporting, Real Sociedad, Toulouse e Seleção Nacional. Oceano terá sempre a ligação à Liga espanhola pela passagem no País Basco entre 1991 e 1994, mas o que provavelmente quase ninguém se recorda é que nessa altura, antes de voltar a Alvalade (numa transferência que devia ter ocorrido mais cedo mas que acabou por ficar bloqueada porque os leões foram proibidos pela Federação em 1993 de inscrever jogadores, por causa de uma dívida à Ovarense que afinal se veio a provar que não existia), esteve perto de assinar pelo Barcelona, chegando inclusive a reunir com Johan Cruyff e Josep Lluís Núñez antes de ver essa transferência de sonho bloqueada pelo elevado preço que era pedido pelo seu passe aos 31 anos.

Oceano. “O Patrício foi o nosso Pelé no Euro-2016”

“Mais difícil defrontar a Espanha ou Cristiano Ronaldo? Não gosto de individualizar, apesar dos três golos que Ronaldo marcou, e que são de aplaudir, ninguém ganha sozinho. Agora o nosso pensamento está centrado apenas na Espanha. A verdade é que, quando começar o jogo, somos líderes do grupo, sinal de que ganhámos. Pontos fracos? Não posso dizer, caso contrário estava a dar uma ajuda ao Hierro… Por isso, prefiro que nos foquemos nos nossos pontos fortes. Sobre a troca de Lopetegui, só posso dizer que é uma situação muito complicada para qualquer treinador ou presidente mas são eles que têm de resolver”, destacou antes garantir que “a Espanha é sempre forte”. “Se forem todos como o Hierro, não vai ser fácil. Era um grande jogador e uma grande pessoa”, recordou, antes de admitir ainda que “ouvir o hino nacional mexe muito mas há o lado profissional”.

Imagem do treino de adaptação ao relvado de São Petersburgo, que se repetiu no treino desta tarde (CHRISTOPHE SIMON/AFP/Getty Images)

Acabada a conversa, um olho no relvado e sobretudo nos 15 minutos abertos à comunicação social que acabam por ser preenchidos em grande parte com os habituais “meiinhos” com grupos de cinco ou seis jogadores, sendo que há um que acaba por concentrar todos os focos: Sardar Azmoun, o avançado de 23 anos que se destaca cada vez mais como a estrela da companhia e que continua a ser cobiçado por muitos clubes europeus. Depois de ter sido pré-convocado para o Campeonato do Mundo de 2014 com apenas 19 anos, acabou por ficar de fora nas escolhas finais mas surge agora com um estatuto inquestionável.

Filho de um antigo jogador e treinador de voleibol (modalidade que ainda praticou, antes de optar de vez pelo futebol), passou por Oghab Gonbad, Shamoushak Gorgan, Etka Gorgan e Sepahan, onde se estreou nos seniores com apenas 16 anos em 2011, saltando depois para o Campeonato da Rússia, pelo Rubin Kazan, em 2013. Não demorou a dar nas vistas e motivou uma oferta de dois milhões de libras do Arsenal, que foi recusada. Seguiram-se abordagens de Liverpool e Zenit, entre outros, mas as recusas sucessivas foram fazendo com que evoluísse então no Rostov, primeiro por empréstimo e depois a título definitivo. Em 2016, no seguimento da época de afirmação, voltou ao Rubin Kazan e a ser sondado por Lazio, Celtic, Everton e Valencia com a camisola 69, o número da matrícula dos carros de Gonbad-e-Kavus, onde nasceu no Irão.

Aos 23 anos, Sardar Azmoun é o principal foco de uma equipa iraniana que começou o Mundial a ganhar (Richard Heathcote/Getty Images)

A soma da procura e a multiplicação dos elogios acabou por tornar Sardar no foco de um manancial de alcunhas pesadas como o “novo Ibrahimovic” e o “Messi iraniano”. Curiosamente, só gosta da primeira e já perguntou a que propósito lhe chamavam Messi se ele não é nem vai ser nunca um jogador de dribles, mas sim de jogo aéreo forte, impulsão e explosão. Uma coisa é certa: olhando apenas em termos de seleção, o avançado tem potencial para um dia chegar aos números de Ali Daei, o melhor marcador de sempre de seleções que é um autêntico Deus no país. Pelo menos a nível de fãs para lá caminha: são poucos os iranianos que estão à porta do centro de estágio (os que estão, pouco mais de uma dezena, cantam e dançam para as televisões como se estivessem num estádio em festa), mas a maioria já tem a camisola número 20 da coqueluche do conjunto de Carlos Queiroz. Próxima paragem? Luzhniki Stadium. Para acabar o dia em grande (ou de forma muito maior do que pensaríamos…).