Enviado especial do Observador à Rússia (em Moscovo)

Na fila para pagar o double espresso e a garrafinha de água da ordem, um olhar ainda meio ensonado para o lado e parece mesmo ele. Uma vista de olhos discreta na acreditação que traz ao pescoço e está confirmado, é mesmo ele. Ali ao pé de nós estava Phil Neville, o antigo lateral de Manchester United e Everton que é hoje selecionador da equipa feminina de Inglaterra. “Já está o dia feito”, pensamos. Controlamos o seu trajeto, porque falar ali com tantas coisas na mão ainda podia dar asneira, e abordamos o ex-jogador uns 15 minutos depois. “Olá Phil, o meu nome é Bruno, sou de Portugal. Podemos falar dois minutos?”, perguntamos. “Oh Bruno, desculpa. Não estou autorizado, estou cá como comentador também”, responde. Nem uma pergunta sobre Ronaldo? “Não posso mesmo. Obrigado Bruno, foi um prazer conhecer-te”. Ok, um tackle a recordar os tempos em que ocupava lugar na equipa de Alex Ferguson mas com classe, sem falta. Acreditemos que o contrato e a exclusividade valerá a pena.

A nossa abordagem seria sobre Ronaldo e não só, claro. Só de cabeça já estavam pensadas umas cinco ou seis perguntas. E uma delas dava jeito para esta crónica, paciência: que opinião tem sobre o trajeto do técnico Roberto Martínez (embora nunca tenham chegado a trabalhar juntos, porque Neville arrumou as botas numa época e o espanhol chegou ao Everton no início da seguinte)? Para este sábado, e olhando para o onze provável da Bélgica, essa era única dúvida porque de resto aqueles jogadores de topo contam a história com a cabeça e com os pés. A dúvida, essa, é se é uma história de 11 jogadores ou de uma equipa.

Martínez, um antigo médio defensivo do Saragoça que fez algumas épocas em clubes mais modestos do futebol britânico, é um homem de projetos, que gosta de tempo para trabalhar. Assim se explica o facto de ter orientado apenas quatro conjuntos em 11 anos: Swansea, Wigan, Everton e, desde 2016, a Bélgica. Mas este é o seu maior desafio, porque tem matéria prima como nunca sonhou algum dia ter. E com uma pressão extra muito maior, como ficou bem patente na reação da imprensa (e em termos gerais) ao deixar Nainggolan de fora por razões meramente técnicas: a margem para falhanços dos objetivos é nula.

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“Jogo aborrecido com o Panamá? Nós queremos ser aborrecidos. Somos uma equipa de futebol, não queremos andar a encher páginas pelos motivos errados. Este é um momento especial na nossa carreira e estamos aqui para mostrar o potencial que temos, cada um dos 23 jogadores com o seu papel”, comentou na antevisão ao encontro da Tunísia. “Temos de gerir bem a bola: se a perdermos em posições perigosas, eles podem criar perigo. Só temos de ser normais, jogar o nosso jogo e afastar a pressão que é jogar um Mundial. Simplificar! A Tunísia tem de ganhar o jogo, por isso será muito aberto”, acrescentou.

Correu bem, muito bem: apesar da qualidade da Tunísia, que sem ter nomes muito conhecidos construiu uma ideia de jogo interessante que só caiu pelas debilidades defensivas e pelo anormal número de passes falhados em zonas proibidas, a Bélgica ganhou e já está nos oitavos do Mundial. No entanto, aquela que muitos colocam numa segunda linha de candidatos ao triunfo quase ao nível de Portugal, ainda tem um problema para resolver. E se Martínez, um estudioso dentro e fora dos relvados (graduações em fisioterapia e gestão empresarial), encontrar solução para isso, cuidado com estes Diabos Vermelhos…

O encontro no Spartak Stadium com aquele ambiente do costume (aqui a bola ser às 15h, às 18h ou às 21h é um bocado igual, mas estádio a seguir ao almoço tem sempre mais piada) começou a um ritmo frenético, numa avalanche de emoções que meteu pelo meio três golos, uma lesão, um amarelo e vitória do KO dos ataques sobre as defesas.

Logo aos três minutos, Meunier deixou a primeira ameaça à baliza de Ben Mustapha (que rendeu Mouez Hassen, lesionado com gravidade no encontro com a Inglaterra), que logo a seguir teve de sair a baliza num lance onde Lukaku foi lançado longo e em profundidade e Meriah, percebendo que não tinha pernas para aquela locomotiva, começou a fazer sinal para que saísse aos seus pés (como aconteceu, seguindo-se uma discussão mais ríspida entre ambos). Mas o golo estava mesmo a chegar a surgiria após mais um dos muitos erros da defesa tunisina: Ben Youssef teve uma entrada imprudente a varrer sobre Eden Hazard, o árbitro assinalou grande penalidade e o capitão belga, cheio de classe, inaugurou o marcador com apenas seis minutos.

Bastava os Diabos Vermelhos pressionarem com uma linha mais subida no último terço do conjunto africano e as hipóteses de haver uma recuperação de bola com espaço para criar oportunidades era como uma versão instantânea para fazer golos: aos 12′, na sequência de uma jogada entre Meunier e Lukaku, o passe do avançado acabou por ter um remate enrolado e sem perigo de Hazard; aos 16′, após mais uma perda de bola (agora de Ali Maaloul), Mertens fez a diagonal, assistiu Lukaku e o dianteiro do Manchester United aumentou para 2-0. Mas calma, havia mais: logo a seguir a Tunísia reduziu por intermédio de Dylann Bronn (de cabeça, após livre lateral aos 18′), foi forçada a fazer a primeira alteração e ainda viu Sassi ser admoestado com um amarelo por protestos num lance que envolveu o sempre irrequieto Khazri e Vertonghen.

O ritmo e a intensidade do encontro acabaram por baixar de forma natural e foi aí que surgiu mais visível o calcanhar de Aquiles desta equipa Bélgica. Kahzri, aos 32′, teve um remate para defesa a dois tempos de Courtois, ao passo que Ben Youssef, aos 39′, viu um remate de meia distância sair muito perto da baliza contrária. Tudo porque, neste esquema de três defesas de Martínez enraizou e que “inventou” um ala que faz todo o corredor chamado Ferreira Carrasco, o mínimo deslize pode ser a morte do artista porque a Bélgica fica demasiado exposta a transições e muito raramente ganhou uma segunda bola após corte da defesa no corredor central. Em termos práticos, e para explicar melhor, esta uma ideia de jogo que tão depressa pode expor as (poucas) debilidades de Alderweilreld e Vertonghen como consegue explorar as (muitas) potencialidades do “menos mediático” Meunier. Contra a Tunísia, esse equilíbrio foi globalmente conseguido mas não da forma como o resultado acaba por mostrar, até pela quebra física que os comandados de Nabil Maaloul tiveram a meia hora do fim.

Para compensar, já se sabe: basta esta máquina de futebol ofensivo ter o mínimo de espaço em campo em velocidade (e nem precisa de tempo para pensar, porque a qualidade individual é demasiado evidente) e há sempre perigo, em cima do intervalo consumado por Lukaku após mais uma diagonal das costas da defesa tunisina após assistência de Meunier.

No segundo tempo, a Tunísia arriscou tudo numa entrada que lhe permitisse fugir ao destino traçado, ainda teve duas ou três bolas que cruzaram a área à espera de um desvio vitorioso que nunca apareceu, mas o 4-1 de Eden Hazard, após um fantástico passe longo de De Bruyne a explorar a profundidade nas costas dos centrais contrários, acabou por sentenciar de vez o jogo (51′). Aliás, olhando para o desenrolar dos acontecimentos daí para a frente, até foi lisonjeiro ter ficado por aí, porque só Batshuayi, que rendeu Hazard quando Lukaku também já tinha sido poupado, teve três flagrantes oportunidades onde só não marcou pelas grandes intervenções de Ben Mustapha, pelo corte providencial de Meriah em cima da linha e por algum azar à mistura, quando acertou na trave após mais uma jogada de génio de De Bruyne. Tantas vezes lá foi que acabou mesmo por marcar, à quarta tentativa (e ainda falharia uma quinta, ao lado): Tielemans, que tinha acabado de entrar para o lugar de Mertens, progrediu com bola, cruzou largo ao segundo poste e o dianteiro do B. Dortmund encostou para o 5-1 (90′).

Ainda assim, o resultado não estava feito: confirmando aquilo que tínhamos explicado em cima, numa jogada com processos simples (até demasiado simples), Naguez surgiu nas costas de Carrasco após entrar no espaço entre lateral e central, cruzou rasteiro para a área e Khazri fez o 5-2 final num golo que o capitão tunisino já merecia pelo que tinha feito sobretudo na primeira parte. Um pouco do nada, assistimos ao encontro com mais golos do Mundial até ao momento, com a Bélgica a mostrar que tem uma rotação ofensiva de primeira linha. Aliás, tem tudo: quem passa (De Bruyne e Witsel), quem cria (Hazard e Meunier), quem explode (Mertens) e quem finaliza (Lukaku). Para um treinador que trabalhe apenas o ataque, está perfeito. No entanto, tem de crescer nos posicionamentos defensivos após perda, sob pena de ficar demasiado exposta a qualquer equipa com o mínimo de qualidade. Se conseguir, é candidata a chegar, pelo menos, aos melhores quatro. E esse é o trabalho de Martínez, o estudioso que tem nas mãos uma geração capaz de colocar a belga de novo no topo.