Além de serem portugueses, músicos e terem tocado esta sexta-feira no festival Rock in Rio, o que é que Manel Cruz e os Capitão Fausto têm em comum? O speaker brasileiro de serviço no palco Music Valley (o secundário do Rock in Rio) tentou encontrar semelhanças: descreveu o primeiro como “um dos maiores artistas portugueses” e os segundos como “uma das grandes bandas da música portuguesa, uma banda espetacular”. Porém, para este speaker, não é só a qualidade dos dois projetos que coincide. Também semelhante é o privilégio que o Rock in Rio teve ao recebê-los. “É uma honra” foi a expressão utilizada para introduzir o músico ex-Ornatos Violeta e a nova banda sensação do pop-rock nacional. E Manel Cruz e os Capitão Fausto não pouparam esforços para mostrar que quem falava assim tinha mesmo razão.

Manel Cruz com a palavra “Deus” na ponta da língua

Manel Cruz, ex-membro dos Ornatos Violeta, ex-integrante das bandas Pluto e Supernada e autor do projeto a solo Foge Foge Bandido, decidiu finalmente assumir um projeto musical com o seu nome. O mais curioso é que, apesar de agora ser apenas Manel Cruz e estar a preparar-se para editar um álbum em seu nome (sai em setembro), o cantor de “Ouvi Dizer” e “Chega” continua a não dispensar uma banda. As novas canções foram criadas com a ajuda de três parceiros musicais que também acompanham Manel Cruz ao vivo. Assim aconteceu esta sexta-feira no Rock in Rio.

Manel Cruz, António Serginho, Eduardo Silva e Nico Tricot entraram em palco às 17h e percebeu-se desde início que tinham uma missão espinhosa pela frente. A forte chuva que caía àquela hora, somada ao horário pouco convidativo para quem trabalha (17h de uma sexta-feira), levaram a que apenas alguns resistentes, vestindo capas impermeáveis (azar dos azares, estavam esgotadas no ponto de venda mais próximo), se aproximassem do palco. O recinto estava ainda bastante vazio por essa altura e, entre os que assistiram ao concerto, foram muitos os que se tentaram proteger da chuva debaixo das árvores de uma pequena colina lateral ao palco.

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Manel Cruz e a sua banda começaram ao som de uma música nova de tom feminista, em que Manel Cruz canta “A minha mulher não é minha” e “Não precisa de mim, isso é o que me agrada nela”. Uma boa surpresa para arrancar um concerto que incluiu bastantes temas inéditos e ainda desconhecidos do público, pertencentes ao próximo disco do músico. As exceções seriam algumas incursões por temas antigos — do grupo Pluto, do projeto Foge Foge Bandido (sobretudo deste) e, surpresa das surpresas, dos Ornatos Violeta (“um docinho”, mas já lá vamos). E ainda três canções já reveladas do novo álbum: “Beija-Flor”, “Ainda Não Acabei” e “Cães e Ossos”.

Bem disposto, Manel Cruz ia brincando com o público, dizendo (sorridente) que os quatro músicos estavam a tocar em condições “bem piores” do que aquelas em que a plateia os ouvia. “Porque não temos capas”, explicava. Das novas canções, são várias as que versam sobre Deus ou religião. É o caso de “Cães e Ossos”, a segunda que Manel Cruz tocou com a banda no concerto, de ukulele (instrumento com que compôs a base melódica dos novos temas, posteriormente expandidos pelos restantes instrumentistas) nos braços, que começa com os versos “Deus é Deus / eu sou o seu pai” e prossegue com “Deus é bom /, um bom ladrão”.

O tema parece interessar bastante Manel Cruz nestes dias: a terceira canção voltaria a ter um alvo semelhante. Foi introduzida assim: “E agora vamos à missa. Faça chuva ou faça sol há sempre”. Provocador, o cantor canta “troco a missa por uma chamuça / O teu pai não é o pai de todos / na verdade é uma cadela”. Seguiu-se um rol de canções novas, todas elas inventivas devido aos samples eletrónicos utilizados e aos arranjos pouco habituais em canções pop-rock, responsabilidade do ukulele e do banjo que Manel Cruz toca mas também dos restantes elementos da banda, que na guitarra, baixo, bateria e teclados mostram saber acompanhar o cantor na procura de novas estéticas. “Ainda Não Acabei” foi a mais capaz de entusiasmar os presentes.

“Agora vamos dar um saltinho ao Bandido”, referiu o cantor, antes de tocar “As Nossas Ideias”, interessante tema do único álbum que editou com o alter-ego musical Foge Foge Bandido, intitulado O Amor Dá-me Tesão / Não Fui Eu Que Estraguei. Seguiu-se novo tema desse álbum: “Canção da Canção Triste”, um elogio aos efeitos das canções menos felizes (“Diz-me o porquê dessa canção tão triste me fazer sentir tão bem”). O concerto começou a aquecer e Manel Cruz, que acabou a cantar e tocar em tronco nu, perguntou ao público se estava “a ficar quentinho” na plateia, apesar da chuva não dar tréguas. Estava mesmo.

Zé Pedro “voltou” uma última vez ao palco para tocar com os Xutos & Pontapés

Mais canções novas viriam de seguida — uma novamente com referências a Deus (“Quem é Deus quando tudo cai?”), outra intitulada “Reboque” –, antes de um regresso ao repertório dos Pluto, num momento mais intenso (rock and roll) que convenceu alguns a enfrentarem a chuva e aproximarem-se do palco (quem já lá estava acompanhou a canção com palmas).

O concerto ia longo mas havia ainda quatro trunfos por usar: “Ovo”, canção-manifesto que Manel Cruz revelou em 2014; um segundo tema que Manel Cruz tem vindo a apresentar em concertos e no qual canta “na minha aldeia chamam-me maluco / por não fazer a barba às ideias”; a “Canção da Canção da Lua”, de Foge Foge Bandido, que encerrou o concerto; e “um docinho” inesperado que Manel Cruz ofereceu “para compensar por esta chuva”: um regresso raríssimo ao repertório dos Ornatos Violeta e a essa grande canção (aqui tocada com ukulele) “Capitão Romance”. Foi um concerto longo para o que é habitual num palco secundário de um festival (durou mais de uma hora) e ainda bem. Serviu de aperitivo a um disco muito aguardado. Venha ele, já em setembro.

Os Capitão Fausto e o capitão Luís Severo

O começo até foi acidentado: ou o volume do microfone do vocalista dos Capitão Fausto, Tomás Wallenstein, não estava bem afinado no início do concerto, ou o microfone não estava ligado de todo. Isto porque os primeiros versos de “Célebre Batalha de Formariz”, tema com que a banda portuguesa iniciou esta sexta-feira a sua atuação no palco Music Valley do festival Rock In Rio, chegaram impercetíveis ao público.

Talvez o vocalista dos Capitão Fausto até tenha achado graça à situação, porque não lhe falta humor auto-depreciativo, como mostrou quando, ao introduzir o novo single da banda, já a meio do concerto, disse que este era um tema que “requeria alguma afinação — pelo menos na guitarra, porque a voz é um caso completamente perdido”. Seja verdade ou mentira, exagero ou crítica acertada, não seria a voz de Tomás Wallenstein a tornar o concerto do grupo em algo menos do que foi: um concerto competente, único e possivelmente irrepetível (já explicamos), que só não os consagrou como banda de referência da música nacional porque essa consagração já aconteceu em atuações anteriores. Por exemplo, no Coliseu dos Recreios, há um ano e meio.

O quinteto formado por Manuel Palha (guitarrista), Domingos Coimbra (baixista), Francisco Ferreira (teclista), Salvador Seabra (baterista) e o já referido Tomás Wallenstein (guitarrista e vocalista) entrou em palco por volta das 19h, ao som de “Stuck in the Middle with You”, tema do grupo escocês Stealers Wheel. Na canção, os Stealers Wheel cantam que não sabem porque vieram “aqui esta noite”, já que têm “a sensação de que há algo que está errado”. E para os Capitão Fausto havia mesmo: o volume do microfone. Porém, depois de uns segundos mais trémulos, a banda encarrilou e partiu para uma atuação de bom nível.

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Quando os Capitão Fausto terminaram essa primeira canção, dificilmente alguém esperaria assistir a um concerto inusitado. Não havia sequer sinais disso: Tomás Wallenstein perguntava ao público que assistia ao concerto (em bom número) “como é que é”, os Capitão Fausto arrancavam para “Corazón” — um dos melhores temas do último álbum da banda, Capitão Fausto Têm os Dias Contados — e prosseguiam com “Dias Contados”, momento um pouco mais morno no alinhamento, e com “Semana em Semana”, que voltou a aumentar o nível. Até aqui tudo normal. Tudo mudaria de seguida.

Para surpresa do público, que mostrava conhecer bem a banda — cantando as letras das canções e parecendo formar uma espécie de público paralelo àquele que comprou bilhete para o terceiro dia de festival sobretudo devido aos The Killers e à muito popular festa Revenge of the 90’s –, os Capitão Fausto chamaram o amigo Luís Severo ao palco. Um amigo que grava no mesmo estúdio da banda e cujo crescimento (na sequência de um álbum homónimo editado por Luís Severo em 2017) os Capitão Fausto têm seguido de perto.

Nunca os Capitão Fausto e Luís Severo (“o nosso Marcelo Rebelo de Sousa”, brincaram) tinham tocado juntos — o último já tocou canções ao vivo com alguns dos membros da banda mas nunca tantas e com todos em simultâneo, como confirmou ao Observador no final do espetáculo. O resultado foi único e, se o formato do concerto não se repetir, o público presente terá tido um grande privilégio em assistir ao espetáculo: os Capitão Fausto fizeram de algumas boas canções de Luís Severo, como “Planície (Tudo Igual)” e “Boa Companhia”, temas jangly-pop mais soalheiros e dançáveis, enquanto Luís Severo levou os arranjos de “Alvalade Chama por Mim” (com os primeiros versos cantados apenas pelo convidado) e “Tem de Ser”, dos Capitão Fausto, para outras paragens, mais contemplativas e igualmente estimulantes.

Trocados os agradecimentos, terminado o momento de colaboração que tornou este concerto um concerto especial dos Capitão Fausto e não apenas mais um concerto corriqueiro da banda (que edita um novo álbum este ano), Wallenstein, Seabra, Palha, Coimbra e Ferreira aproveitaram o clima criado e o numeroso público para fazer uma festa conjunta, cheia de palmas, versos cantados em uníssono e muita dança. “Santa Ana”, tema do primeiro disco dos Capitão Fausto que surgiu com uma longa “intro” instrumental folk-rock no início –particularmente interessante –, “Amanhã Tou Melhor” (disparada logo a seguir, quase de rajada), “Sempre Bem” (o novo single), “Verdade” e “Morro na Praia” (esta a encerrar o concerto) foram os temas que se seguiram. E fecharam a bom nível um concerto que será sobretudo lembrado pelas canções que as antecederam.