Esteve até às cinco da madrugada a tirar fardos de palha da zona de campismo do Bons Sons e no dia seguinte, às dez da manhã, estava à conversa com o Observador. A semana antes da abertura do festival é sempre duríssima, conta Luís Sousa Ferreira, de 34 anos, designer, programador cultural e responsável por esta proposta comunitária – a única do género em Portugal.

Defende nesta entrevista que os 12 anos à frente do Bons Sons lhe ensinaram que, afinal, há público para música portuguesa com novas linguagens. Explica como é erguer todos os anos um projeto que vive de voluntários e afirma que o campo é tão contemporâneo quanto a cidade.

A nona edição do festival começa nesta quinta-feira, na aldeia de Cem Soldos, concelho de Tomar, com Lince, Salvador Sobral e Slow J como nomes fortes do primeiro dia. Termina no domingo, dia 12.

No sábado, 11, atua Conan Osiris, o músico de que todos falam

É conhecido por ser um faz-tudo dentro do festival. Ao fim de 12 anos já consegue estar afastado da logística e focado apenas na programação?
Gradualmente começo a ficar mais especializado. Passei de fazer quase tudo para estar mais concentrado no conceito, na estratégia, na comunicação, na programação, no desenho do festival. Na prática, há uma ambiguidade nas funções, porque este é um festival comunitário. Sobretudo, é um projeto de capacitação. Fico muito feliz de ver os jovens e os menos jovens de Cem Soldos a desafiarem-se e a experimentarem coisas que nunca experimentariam se não fosse o Bons Sons. Eles sentem aquele temor do desafio, mas depois superam-se e ficam muito orgulhosos. A pouco e pouco, a coisa ganha forma, as dores de parto desaparecem e as pessoas começam a ficar felizes. Até eu, que estou nisto há tantos anos, fico surpreendido por ver tanta dureza no processo a ser dissipada apenas pela felicidade de termos conseguido.

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Essa dureza vê-se em quê?
Estes últimos dias, por exemplo, foram horrorosos. Imagine-se o que é montar um festival quando estão 45 graus de temperatura. Ontem [quarta-feira, dia 8] estivemos até às cinco da madrugada a carregar fardos de palha. Como diretor, tenho de o fazer e as outras pessoas também. O Bons Sons é um projeto muito horizontal e às vezes transformar uma aldeia inteira num festival, e trabalhar todos os pormenores, todos os recantos, é duríssimo. Além disso, só podemos começar a construir efetivamente na via pública uma semana antes do início do festival. Temos muitos voluntários, mas os cargos são determinados pelo perfil das pessoas, não o contrário. Isso significa que há menos gente com uma visão global, o que por vezes cria impasses nas montagens.

Estiveram a carregar fardos de palha para quê?
Havia muitos fardos na zona de campismo e tínhamos de deixar tudo lindo e maravilhoso para as pessoas que começam a chegar.

O Bons Sons é descrito como um festival comunitário de música portuguesa. À partida, o único evento de grande dimensão que parece funcionar da mesma forma é a Festa do Avante.
Percebo a comparação, mas são realidades diferentes. A organização do Avante, ainda assim, é profissional. Há funcionários e um espaço próprio para a festa. A nossa dinâmica é diferente.

Isso quer dizer que são o único festival comunitário em Portugal?
Com esta dimensão, sim. De resto, há outras festas mais pequenas e pontuais organizadas pelas pessoas de cada zona. Somos o 12º maior festival do país, segundo os dados da Associação Portuguesa de Festivais Música. De alguma forma, estamos a lutar com projetos de grandes marcas nacionais e internacionais e de grandes municípios. Somos o único festival de uma associação sem fins lucrativos, o Sport Club Operário de Cem Soldos [SCOCS], e com uma equipa constituída pela comunidade local.

Luís Ferreira, o diretor do festival Bons Sons (Foto: Rui Miguel Pedrosa / Slideshow / Global Imagens)

Quantos voluntários têm este ano?
Somos todos voluntários e estamos divididos em três grupos: os de Cem Soldos, os externos e os próximos. Os de Cem Soldos fazem parte da equipa que coordena o festival ao longo do ano e são os que depois acolhem e prestam serviços durante os quatro dias de Bons Sons. Cedem terrenos, casas, ajudam com produtos e recursos ao seu alcance. Os voluntários externos são cerca de 70, de todo o país, e chegam uma semana antes de o festival começar. Acabam por ser embaixadores do Bons Sons, porque ajudam a divulgar o projeto no país e eventualmente a criar outras propostas idênticas nas suas áreas de origem. Por fim, os voluntários próximos são os da região de Tomar. Cada vez mais, o festival traz dinâmicas económicas para a região, não só para a aldeia de Cem Soldos. Às vezes, as pessoas acham que os festivais dão imenso dinheiro e são grandes organizações, mas, quando se aproximam, percebem qual é o intuito e quais são as dificuldades.

Quanto custa e quanto rende o festival?
É flutuante. As receitas vêm na sua maioria da Câmara Municipal de Tomar e este ano temos um patrocinador, que é a Super Bock, o único apoio privado. Depois, lucramos com os bilhetes, os serviços, o merchandising e o aluguer de espaços. O orçamento anual ronda os 450 mil euros, mas pode ser um pouco mais ou um pouco menos, conforme o consumo e os concessionários durante o festival. Só sabemos no fim de cada edição.

Têm tido dificuldades de financiamento?
A viabilidade é assegurada apenas e só pela população, pelo facto de trabalharmos que nem uns loucos. Temos de andar a endireitar pregos para que o festival exista. É tudo reutilizado e repensado mil vezes, o que torna o processo mais duro. Se conseguíssemos contratar fora, era muito mais simples, mas não há liquidez para isso. Assumimos sempre essa dimensão. Tivemos anos menos bons, outros em que conseguimos algum lucro, mas não é bem lucro, porque vem tudo do trabalho voluntário, para que as receitas sejam depois convertidas nos projetos sociais da aldeia. No início, não tínhamos qualquer apoio, mas teria sido melhor desistir? Ficar à espera? Não. Arranjámos soluções. Cada um, com as suas competências e com o seu tempo, oferece à comunidade, na esperança de que isso se reflita nas receitas do festival e leve à criação de uma estrutura.

Em Cem Soldos a casa deles é o festival de todos

O Bons Sons começou há 12 anos e vai na nona edição. Porque é que mudaram de bienal para anual?
Essa decisão foi tomada em 2014. Quisemos criar um vínculo mais perene, para que o festival se tornasse mais atrativo e recebesse apoios. Para a própria aldeia, era mais fácil manter equipas de ano para ano. Quando te sentas, custa-te mais a levantar. Se nunca te sentas, não te custa tanto. Em termos de comunicação, também é mais fácil vender um evento que as pessoas sabem que acontece todos os anos. No fundo, conseguimos provar que a música portuguesa tinha escala para um festival a cada ano.

Como é que se lembraram de fazer um festival de música numa aldeia?
Começou em torno do “Acontece, Cem Soldos”, um grande evento comemorativo dos 25 anos da associação local, o SCOCS. Fizemos imensas ações, repensámos vários espaços, o mote era trazer a contemporaneidade para o campo. Éramos, e somos, todos aldeões, jovens de Cem Soldos com um vínculo muito grande à aldeia. Vivíamos isso com muito orgulho. Mas não nos revíamos no tipo de festa de arraial que costumava ser organizada na aldeia, não nos reconhecíamos naquele discurso. E quisemos trazer um novo discurso para a aldeia, muito mais contemporâneo, na lógica de que há espaço para a contemporaneidade na aldeia, tal como na cidade. Eu conhecia vários projetos de música portuguesa que tinham imenso valor. Foi aí que pensámos em programar música portuguesa. No início, foi difícil explicar. Muita gente dizia que ou traríamos os Xutos & Pontapés, que são sempre seguros, ou não conseguiríamos fazer nada. Dizia-se que o público não gostava de música portuguesa, que as bandas se esgotariam numa só edição, etc., etc.

O facto de ser um festival na aldeia também era uma imagem difícil de vender?
Claro, até mesmo junto de pessoas das cidades aqui à volta. Pensavam que quanto mais longe estivessem da aldeia, melhor, porque todos veneravam a capital, Lisboa é que era. Toda a gente queria a modernidade ao estilo Expo 98. E nós trabalhávamos numa coisa muito diferente. A aldeia não era sexy, o SCOCS não era sexy, a ideia de voluntariado e de comunidade também não. Mas juntámos tudo isso, que parecia pouco apelativo, e percebemos que valia a pena.

Quantas pessoas estiveram na primeira edição, em 2006?
Penso que foram 15 mil.

E no ano passado?
Cerca de 33 mil. E este ano acho que vamos subir um pouco.

Que fasquia querem atingir?
Queremos mais pessoas, mas não de forma concentrada. A escala do festival nunca poderá ultrapassar as 40 mil pessoas, mas também não é essa a ambição. Tem de haver um equilíbrio entre o festival e a aldeia que o acolhe.

Há precisamente uma década, os Deolinda lançaram o primeiro álbum e passaram pelo palco do Bons Sons

Há 12 anos, o público não teria tanto interesse pela música portuguesa como tem hoje…
Não tinha interesse nenhum. Acho que se pode comprar com a opinião que as pessoas tinham, e de certa forma ainda têm, sobre o cinema português. Muita gente dizia de forma categórica “eu não gosto de música portuguesa”, “em português não funciona”. Esse preconceito total inibia a própria criação. Por isso, as bandas apareciam e eram levadas a criar um pastiche da música anglo-saxónica.

Por outro lado, a ideia de estar no mundo rural, ou até de abandonar a cidade, também seria menos apelativa do que é hoje. O Bons Sons ajudou nesta transformação ou teve a sorte de apanhar a mudança de paradigma?
A sorte é resultado de trabalho, muitas vezes invisível. Estávamos muito atentos. Acho importante sublinhar que a ideia de aldeia não era apelativa há 12 anos e mesmo a ideia que hoje se tem sobre as aldeias não é a que nos interessa. Não queremos que o público venha brincar à aldeia. Não queremos a ideia de exotismo. Queremos mostrar o que somos. Há quem chegue aqui e pergunte onde estão os aldeões. Eu respondo: “Estás a falar com um aldeão”. Muitas vezes, nesse regresso ao genuíno, ainda há quem procure a senhora de lenço na cabeça sentada no burro. Ora, nós somos o resultado da maneira como nos veem, mas também da maneira como permitimos que nos vejam. Desde o início, nunca fomos, apesar de alguns acharem isso, nunca fomos um projeto de música etnográfica, à procura de reviver o passado. Rejeitámos sempre essa dimensão. Sinto muitas vezes que o lugar que se quer dar ao campo, ou à dimensão rural, é o lugar de um museu vivo. Isso não pode ser. O espaço rural é tão contemporâneo como a cidade. É esse o nosso discurso. Quem vem ao Bons Sons, vem a um festival de 2018, ouve música de 2018 e convive com pessoas de 2018.

Nunca lhe ocorreu programar cantores ou bandas de música pimba?
Trabalhamos com projetos que criam novas camadas para a cultura.

Têm de ser bandas experimentais?
Não experimentais, ou, melhor talvez sejam experiências, sim. São projetos com novas linguagens, projetos artísticos. Não queremos projetos preguiçosos, que agarrem em melodias sol-e-dó. Esses projetos já têm imensas plataformas. O Bons Sons não precisaria de ser plataforma para a música pimba, porque há milhares de arraiais e festas de municípios onde esses artistas já se apresentam. Queremos mostrar que há outras dimensões da cultura nacional e que também devem ter um lugar.

Em relação ao cartaz deste ano, Salvador Sobral é um dos nomes sonantes do primeiro dia. Que outros artistas destaca?
O Salvador Sobral não veio no ano passado, porque não queríamos o fenómeno Salvador Sobral em torno do Festival da Canção, queríamos o fantástico músico que ele é. O cartaz tem um equilíbrio entre nomes emergentes e projetos com décadas que precisam deste palco para criar novos públicos e criar uma relação com o hoje. O critério é todos terem de estar a trabalhar hoje, não podem vir apenas mostrar uma música famosa de há 30 anos. Também no primeiro dia, temos o Slow J, que representa um dos movimentos fortes da música nacional, o hip hop. Selma Uamusse, no dia 9, e Sara Tavares, no dia 10, surgem como representantes da Lisboa mulata, dos intercâmbios culturais entre as diversas comunidades que habitam Lisboa. Ainda no dia de abertura, temos a Lince, uma cantautora da música eletrónica. No dia 12, temos, por exemplo, Lena d’Água, que está a refrescar e a atualizar o trabalho de há algumas décadas em conjunto com Primeira Dama.

[Selma Uamusse atua na madrugada de quinta para sexta-feira]

Numa entrevista recente dizia que o público tem muitos preconceitos sobre arte contemporânea e a criação artística. Vindo de um programador cultural, pode ser impopular.
Pode ser impopular, mas é verdade. Não estou a falar de responsabilidades, estou a falar de uma consequência do trabalho que tem sido feito na programação, na curadoria e na comunicação de vários projetos, da forma como eles são contextualizados nos sítios onde são apresentados. E estou também a falar da falta de curiosidade, que de certo modo é crescente, dos vários públicos. Há uma falta de interesse em relação a várias manifestações. Se tivermos um nome conceituado, as pessoas não se importam de pagar bilhete. Tudo o que é promessa ou descoberta, não conta. Na comunicação social é igual: o Bons Sons só começou a ser notícia quando já tinha presença, quando já estava enraizado, à terceira ou quarta edição. A comunicação social também aposta no que já é certo, trabalha com o que é seguro. Ou seja, a responsabilidade é de todos, da forma como a sociedade está organizada, é sistémico.

Parece haver um divórcio entre o que os artistas propõem e aquilo que as pessoas esperam. Daí que muita gente diga não entender a arte contemporânea. Como é que isto se resolve?
Sim, há esse afastamento. Por um lado, a criação artística não está interessada no Portugal real, não trabalha as vivências que podem ser empáticas para o público. Por outro lado, o público não está interessado naquelas manifestações. Falta uma mediação, que aproxime. O paradigma mudou. Tínhamos o relógio analógico, de ponteiros, e de repente passámos para o relógio digital. A arte contemporânea vive esse drama da mudança de paradigma. O objeto artístico contemporâneo muitas vezes não está ligado à narrativa, ao bem e ao mal, ao princípio, meio e fim. Enquanto as pessoas não conseguirem mudar a forma como se relacionam com o objeto, vão estar sempre à procura daquilo que ele não tem e não estão despertas para aquilo que ele pode dar.

Todas as informações sobre o festival Bons Sons aqui.