No início de “Bohemian Rhapsody”, há uma cena em que Freddie Mercury (Rami Malek), após ter ouvido num “pub” de Londres aqueles que seriam os seus companheiros nos Queen, os então Smile, e sabendo que o vocalista do grupo se tinha embora, propõe a Brian May substitui-lo. “Não com esses dentes, pá!”, responde May. Em vez de ficar fulo e de lhe virar as costas, Mercury diz sobre a sua proeminente dentição: “Nasci com quatro incisivos a mais, o que significa mais espaço, o que significa mais alcance”. Faz uma demonstração, e no plano seguinte Mercury está em palco, a encher o “pub” com o seu vozeirão e a deixar toda a gente boquiaberta. Tomara a este filme de Bryan Singer (que foi substituído por Dexter Fletcher antes do final da rodagem) ter, em termos da biografia de Freddie Mercury, o espaço e o alcance da sua voz.

[Veja o “trailer” de “Bohemian Rhapsody”]

Além de ser a história dos Queen em formato oficial, autorizado e condensado, “Bohemian Rhapsody” é  também uma versão melindrosa, expurgada, fantasiada e moralizante da vida de Freddie Mercury, ou não fossem Brian May e Roger Taylor, e Jim Beach, o “manager” do grupo,  produtores executivos e consultores criativos do filme, com direito a mexer naquilo que quisessem, e sempre que quisessem. Daí que a produção tenha sido muito longa e turbulentíssima, com constantes entradas e saídas de realizadores, argumentistas e actores. Incluindo Sacha Baron Cohen, que esteve para interpretar Freddie Mercury e desistiu, após May e Taylor terem vetado a sua intenção de pormenorizar a descrição dos excessos sexuais do falecido vocalista dos Queen. No que seguia, aliás, uma das várias versões que o argumento da fita conheceu.

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[Veja Sacha Baron Cohen falar do seu desacordo com os Queen]

O filme é tão banal e previsível como os Queen foram inovadores e surpreendentes, e tão bem-comportado e prudente como Freddie Mercury era transgressor e insolente. Por um lado, “Bohemian Rhapsody” faz exactamente o contrário do que, a certa altura, antes de começarem a gravar o lendário álbum “A Night at the Opera”, Brian May diz ao produtor da banda na editora EMI, que o insta a fazer a mesma música que os conduziu à fama e às vendas maciças e milionárias: “Queremos fugir às fórmulas”. Isto é, contempla diligentemente as convenções e clichés do filme biográfico, versão “estrela do rock brilhante e carismática mas atormentada e auto-destrutiva.”

[Veja a entrevista com Rami Malek]

Pelo outro lado, a fita segue à risca a ordem que, na cena em que os Queen se vão estrear no “Top of the Pops” da BBC, o realizador dá aos operadores de câmara para só filmarem Freddie Mercury “da cintura para cima”. Ou seja, atenua a homossexualidade do cantor, que através da sua extravagante expressão em palco fazia parte da imagem dos Queen, e escamoteia quase totalmente a sua vida íntima promíscua, uma roleta-russa sexual, que acabaria por o fazer contrair SIDA e morrer, de broncopneumonia, a 24 de Novembro de 1991. É um branqueamento ridículo e inútil. O estilo de vida debochado de Mercury é bem conhecido em todos os seus pormenores, quer graças a várias biografias, quer a documentários como “Freddie’s Loves”, de 2004, onde são entrevistados a sua namorada e fiel amiga Mary Austin (a quem Mercury deixou a maior parte da fortuna) e muitos dos seus antigos namorados e amantes.

[Veja a entrevista com Brian May e Roger Taylor]

Aqui e ali, entre os lugares-comuns e os melindres, Bryan Singer lá nos vai dando alguma informação sobre o que havia de único na sonoridade pop-rock operática e “glam” dos Queen, cujas influências iam do “hard rock” ao musical de palco e ao jazz, e sobre a excentricidade exótica, erótica, “camp”  e imensamente comunicativa de Freddie Mercury em palco, conta-nos algumas anedotas da complexa gravação de “A Night at the Opera”, e mostra-nos o que era a indústria discográfica nessa era heróica do vinil, das trunfas e das calças à boca de sino. E como o filme tinha de terminar em nota alta, mesmo considerando o trágico fim de Freddie Mercury, “Bohemian Rhapsody” é rematado com a recriação integral da actuação da banda em Wembley, no Live Aid, a 13 de Julho de 1985.

[Veja uma cena do filme]

Os actores escolhidos para interpretar Brian May (Gwylim Lee), Roger Taylor (Ben Hardy) e John Deacon (Joseph Mazzello) parecem os seus respectivos sósias e saem-se agradavelmente. Quanto a Freddie Mercury, se Rami Malek, equipado com uma prótese dentária algo exagerada, lhe apanha bem os maneirismos de palco e os trejeitos vocais e físicos, nunca consegue meter-se totalmente na personagem, dissolver-se nela e fazer-nos esquecer da sua presença. O que vemos ao longo de “Bohemian Rhapsody” é um Malek a trabalhar muito, muito para “ser” Freddie Mercury, nas não a personificá-lo integralmente e a desaparecer por trás dele. Tal como na canção que dá título ao filme, vemos a silhueta mas não o homem.