Jongsu é um calado aspirante a escritor que vê as suas rotinas viradas do avesso depois de encontrar uma amiga de infância, a impulsiva e desbocada Haemi. Mas logo a relação ganha novos contornos quando Haemi vai de viagem – regressando na companhia do misterioso Ben. Assim se forma um estranho triângulo que abre alas para o romance, suspense, tensão, melancolia e até horror. A longa-metragem toma um conto literário como inspiração – “Barn Burning”, ou “Celeiros Incendiados”, de Haruki Murakami, o autor japonês mais celebrado mundialmente.

Nomeado para a Palma D’Ouro e vencedor do prémio FIPRESCI, em Cannes, “Em Chamas” (“Burning”) fez sucesso em 2018, tornando-se no primeiro filme coreano a constar na short-list dos Prémios da Academia para Melhor Filme Estrangeiro (acabou por não passar aos nomeados finais dos Óscares). O sexto filme realizado por Lee Chang-Dong estreia-se esta quinta-feira, dia 16 de maio, nas salas portuguesas. Conversámos com o sul-coreano sobre os mistérios e as perguntas da vida que tenta passar para a grande tela. Contou-nos como, em criança, sonhava ser pintor e confessou a desilusão que sente em relação aos espetadores de hoje em dia, que pedem filmes simples e fáceis.

A Alambique, que traz a longa-metragem a Portugal, promove este sábado (dia 18 de Maio) uma sessão especial que culminará com uma conversa sobre a adaptação do conto à grande tela com Inês N. Lourenço, crítica de cinema, e Maria João Lourenço, tradutora de todos os livros do escritor japonês.

[o trailer de “Em Chamas”:]

“Burning” parte de um conto de Haruki Murakami: foi fiel ao enredo ou absorveu outras influências?
Tudo começou quando a NHK [produtora japonesa] me propôs pôr um conto de Murakami em filme. A ideia original era que eu produzisse e que fosse feito por um jovem realizador, mas devido a várias circunstâncias fui eu que acabei por realizar, porque estava tão interessado. A história original “Barn Burning” segue o mistério de um homem que queima celeiros. Achei que podia alongar este pequeno e curto conto de uma forma cinematográfica para multiplicar as camadas de mistério. Também queria estender o mistério do evento ao mistério do nosso mundo, da vida. O ponto de partida é o Murakami mas o subtexto parte de um conto com o mesmo título de William Faulkner.

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Que papel tem a história do autor norte-americano?
O texto de Faulkner é tão importante quanto o de Murakami. O filme é baseado no mundo pós-moderno de Murakami, mas está conectado com o mundo de Faulkner, repleto de dor, culpa e raiva. O personagem principal do filme, Jongsu, vê o mundo pós-moderno como sofisticado e conveniente, mas com a dor e a raiva que herdou do pai, como o jovem rapaz que é o herói do “Barn Burning” de Faulkner. É um mundo misterioso que, obviamente, tem qualquer coisa de errado – mas não consegues dizer exatamente qual é o problema. Este filme é sobre a ambiguidade do nosso mundo.

Jongsu, Ben e Haemi são os três personagens que seguimos – têm diferenças sociais, políticas e existenciais entre eles. É este o combustível que alimenta a tensão do filme?
Estas três pessoas mostram diferentes facetas da juventude de hoje em dia. Claro que estes diferentes aspetos criam a tensão no filme. Eles não só se diferenciam na classe social com o na forma como vivem. Sabem que são diferentes e que não se podem compreender uns aos outros. São como mistérios uns para os outros.

Fala-se sobre a alta taxa de desemprego, numa televisão discursa Trump, comenta-se a proximidade com a Coreia do Norte: o filme também retrata um tempo e lugar?
A desigualdades sociais, a rendas altas ou as dívidas existem – e não só na Coreia. São problemas do mundo inteiro. E está a ficar pior, a desigualdade está a ficar cada vez mais sofisticada. Paju, cidade de fundo deste filme, está apenas a uma hora de Seul. Na altura em que estávamos a filmar os megafones de propaganda da Coreia do Norte ouviam-se claramente. A questão da divisão das Coreias não é completamente visível, mas domina o dia-a-dia dos coreanos. Como acontece com Trump ou Putin: a política governa o nosso quotidiano.

O misterioso Ben é interpretado por Steven Yeun – que ficou conhecido pelo papel de Glenn em “The Walking Dead”. Escolheu intencionalmente um ator sul-coreano popular, de Hollywood, para interpretar um personagem que também se destaca na história?
Pode dizer-se que o Steven Yeun era o ator que melhor podia transpor a dualidade do Ben. O que é fundamental é que ele entendeu a essência do personagem. Quando o conheci, na fase de casting, ele contou-me que entendia o vazio do Ben, porque estava a vivê-lo. Contou-me da crise existencial que experienciou quando de repente se tornou rico e popular depois de uma fase complicada a viver como um ator asiático desconhecido na América. Senti que ele entendia o personagem como um todo.

O realizador Lee Chang-Dong

Haemi reflete sobre a pequena e a grande fome. Pretendia mostrar como todos temos a grande fome – ou seja, procuramos o significado da vida?
A meio do filme, Haemi dança a Grande Fome contra uma luz de fundo. Ali quis proporcionar a imagem mais cinematográfica antes dela desaparecer. Esta cena de dança é o núcleo do filme. Ela dança com a sua própria liberdade, como os indígenas do deserto Kalahari de que fala. Desde tempos remotos que os seres humanos dançam para descobrir o sentido da vida.

“Em Chamas” é cauteloso e paciente: vai do romance, ao mistério até ao terror de forma subtil. Quer enganar o espetador? 
Não gosto de filmes que sigam um determinado caminho. Na vida não se sabe o que vai acontecer a seguir. O que queria transmitir à audiência é a imprevisibilidade da vida. Apesar do filme ser sobre a vida e os seus mistérios, não queria seguir os cânones de um thriller. Este filme tem várias camadas. Queria que a audiência seguisse primeiro um pequeno mistério, uma pequena questão e depois, sim, um grande mistério e uma questão maior. E no final queria colocar também questões sobre a narrativa e o filme enquanto meio.

Passaram 22 anos desde a sua estreia com “Green Fish”. Como é que o seu cinema mudou?
Não é fácil dizer como mudou… mas posso afirmar que sempre tentei colocar perguntas sobre o mundo em que vivemos e a maneira como vivemos. Sei que hoje em dia os filmes já não fazem perguntas, as pessoas querem entretenimento e fantasia que dão respostas mais fáceis ou permitem esquecer a realidade. Seja qual for, a pergunta é sempre desconfortável e muitas vezes dolorosa. Mas toda a arte que importa questiona. Porque é que o público rejeita estas questões? E difícil de responder. Mas vou continuar com as minhas perguntas desconfortáveis de qualquer forma.

Estudou literatura. Como é que fez a transição para a realização?
Quando era muito pequeno queria ser pintor, depois sonhei em ser escritor, mas nunca poderia imaginar tornar-me num realizador de cinema. Achava que os filmes eram um mundo distante de mim. Pude aproximar-me do mundo teatral através do meu irmão que começou a representar em criança. Quando passei de escritor a realizador foi pela oportunidade de trabalhar no “To The Starry Island” [filme sul coreano de 1993 para o qual escreveu o guião]. Para mim não é diferente comunicar enquanto escritor ou realizador.

Também foi ministro da Cultura entre 2003 e 2004 – como foi essa experiência?
Não é fácil para um ministro trazer mudanças significativas, mas dei o meu melhor. Acima de tudo, o governo aderiu ao princípio de “apoiar mas não interferir” com a cultura e as artes. O que podem fazer é estar a par das grandes produções de cinema coreanas e das suas políticas e estabelecer um plano cultural. Foi um período curto mas sinto que foi recompensante.

“Em Chamas” teve boas críticas não só na Ásia como também nos EUA e na Europa. Este é um bom momento para o cinema coreano?
Pode-se dizer que o cinema coreano é muito ativo, está por aí. Mas olhando para o conteúdo, o panorama não é otimista. A diversidade e o dinamismo são prós do cinema coreano, apesar de ser cada vez mais difícil encontrar filmes esteticamente desafiantes e aventureiros. As audiências cada vez mais gostam de filmes simples e fáceis e ficam relutantes a filmes honestos, originais. É uma tendência global. Com “Em Chamas” quis ir contra a onda cada vez mais simplista dos filmes coreanos – mas não sei se terá um impacto positivo.