Será o Primavera Sound um festival de outra era? Numa época em que se discutem públicos-alvo e identidade parece estranho existir um festival híbrido com algum sucesso. Quer-se indie ou popular? Deve-se tentar apelar aos jovens ou aos graúdos? Às duas perguntas, o Primavera Sound responde apenas sim. Ter concertos de Stereolab e Jarvis Cocker num palco, de Danny Brown e Solange noutro (logo a seguir aos “velhinhos” do indie-rock Built to Spill) e de Allen Halloween num terceiro poderia ser receita para o falhanço completo — e, no entanto, apesar da afluência menor do que em outros anos, o primeiro dia de concertos da atual edição (decorreu esta quinta-feira, 6 de junho) teve os seus méritos.

É provável que um festival com algum grau de esquizofrenia no seu cardápio de concertos precise de alguma fama para não se espalhar ao comprido e continuar a chamar gente. O ecletismo nas propostas musicais saúda-se sempre, mas no primeiro dia de concertos do festival que decorre no Parque da Cidade do Porto foi visível que o NOS Primavera Sound tenta hoje chegar a vários públicos que nem se cruzam muito entre si. E ainda não subiu ao palco J Balvin, a aposta deste ano do Primavera Sound a que mais fãs de indie-rock (os grandes frequentadores das primeiras edições) torceram o nariz…

Bastou assistir a dois concertos quase seguidos, o de Jarvis Cocker (antigo líder dos Pulp) no palco Seat e o do rapper Danny Brown no palco principal, para perceber que há hoje várias tribos a frequentar o festival. Em Jarvis (e no concerto dos Stereolab, também) estavam os ouvintes maioritariamente com mais de 30 anos — alguns entre os 25 e os 30 — com as suas barbas descuidadas, camisas entre o saudades-do-grunge e o psicadélico-burguês, que em muitos casos fogem das “novas tendências da música mundial” como o diabo na cruz. Em Danny Brown, toda essa trupe deu lugar a adolescentes e jovens adultos com camisas coloridas, óculos de sol na cara (sim, mesmo à noite) e danças lascivas até ao chão, alguns detentores de um estilo antigamente conhecida como “moda chunga”, outros detentores do estilo antigamente conhecido como “beto que não falha os festivais de verão alternativos“. Mas vamos à música.

[O público e o ambiente do primeiro dia do festival NOS Primavera Sound:]

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Jarvis, um profeta a anunciar a salvação do mundo (via música e dança)

Nem é preciso ser fã acérrimo de Jarvis Cocker ou detentor de toda a discografia dos Pulp para, ao prestar-lhe alguma atenção, ficar maravilhado num ápice. Antes mesmo de o ouvir cantar, basta vê-lo mexer para perceber que há ali qualquer coisa que se encontra só muito raramente, um frontman que não tem medo nem pruridos de ser frontman, um tipo para quem a “música alternativa” não tem de ser sorumbática e pode conviver com uma pose de espetáculo, um rapaz para quem, enfim, a idade é coisa de somenos. Claro que os anos passam pelo inglês — “vi uma fotografia e está velho! não sou só eu!”, ouvimos ao nosso lado antes do concerto começar —, mas em palco os seus 55 anos passam tão despercebidos como podem passar num homem de 55 anos.

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A idade é uma chatice, mas é daquelas poucas coisas que não é subjetiva — está lá, goste-se ou não. É possível que estejamos a ser “machistas” por mencionar os seus 55 anos, como Madonna deu a entender sobre uma jornalista do The New York Times que decidiu escrever (em parte) sobre ela ter 60 anos, mas o que a “rainha da pop” não percebeu e se espera que Jarvis perceba é que é relevante que o homem crie bandas, escreva canções novas e esteja em palco da maneira que está tendo 55 anos. Como é relevante, claro que é, o modo como Madonna vive, trabalha e planeia o futuro com a idade que tem, nem que seja para combater preconceitos.

De regresso ao concerto: que classe é essa, Jarvis? O inglês apareceu em palco para um concerto com a sua nova banda — Jarv Is — e surgiu como habitual: elétrico, desassossegado, com ótimos movimentos de anca, música para dar e vender e aquele jeito característico para a conversa com as pessoas que o ouvem capaz de convencer até o mais cético dos melómanos. A dada altura, toca castanholas e diz que acabou de nos “mandar uma mensagem em código morse”. Noutro momento queixa-se que a malta está toda calada, o que é que se passará connosco? Lembra o último concerto em Portugal, já no longínquo ano de 2011, no festival de paredes de Coura, diz que achou “que vos tinha perdido”, está contente pelo reencontro. Conta uma história sobre um homem que acorda e vomita a parede e brinca com o mau de tempo: “Está pior do que em Sheffield. Sentimo-nos culpados, será que fomos nós que trouxemos o mau tempo do norte até vocês?”

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Com um início ao som de uma versão de “Heart of Glass”, dos Blondie, ouvida nas colunas — que Jarvis e a banda complementaram já em palco —, começou o “show”, palavra utilizada por exemplo por brasileiros para descrever concertos que aqui se adequa inteiramente. A música não falha e Jarvis Cocker nem sequer teve de dar um concerto best-of.

Os temas foram-se sucedendo com acertos, com ecos da brit-pop em que é mestre e de uma espécie de pop-rock sinfónico-eletrónico de bom gosto assegurado. “Further Complications”, tema que deu título ao seu segundo álbum a solo (editado em 2009), foi interpretado energicamente e pôs grande parte do público a cantar; “Must I Evolve?”, single recente, foi interpretado com Jarvis Cocker à guitarra, ele que em boa parte do concerto foi só vocalista, dançarino e agitador; foi cantado com fervor, acabando com o inglês a gritar com o pé esquerdo pousado em cima de uma das duas colunas de som que lhe serviram de palanque.

Houve ainda “House Music”, que trouxe uma bola de espelho e jogo de luzes ao cenário e colocou a dançar até um rapaz que, às cavalitas de alguém, de camisola colorida e óculos escuros, parecia mesmo querer seguir dali para um after de música eletrónica. “Homewrecker” foi mais um pouco previsível êxito capaz de atravessar as gerações que se reuniram no palco Seat, “Am I Missing Something?” cantada com o inglês em ebulição e pelo meio houve passos de dança de desajeitado experimentado na noite, momentos quase spoken word e voz e pose de profeta a anunciar a salvação do mundo pela música, elevado nas alturas pelo palanque das colunas de som. Foi classe, aptidão natural para o palco, prazer genuíno em lá estar apresentado sem timidez. Foi mesmo bom.

O regresso dos Stereolab e um Danny Brown que foi o oposto dos Built to Spill

Quase tudo pareceu pouco relevante perante o jeito natural para concertos de Jarvis Cocker e a capacidade de Solange cativar a maior massa de gente que se reuniu para um concerto neste primeiro dia do NOS Primavera Sound. No entanto, houve mais.

Houve, desde logo, um concerto exímio dos Stereolab, que voltaram recentemente aos palcos depois de dez anos de ausência. A banda formada pelo inglês Tim Gane e pela francesa Lætitia Sadier em 1990 recomeçou exatamente onde tinha parado, naquela música inclassificável que se apropria do krautrock, do indie-rock, da música eletrónica mais experimental e de ritmos mais tropicais para juntar tudo num caldeirão. Em palco, é uma mini-orquestra a fazer jams longas que convidam toda a gente, suavemente e também por isso com sedução, a aderir àquele som cósmico e ritmado com movimento e dança.

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Também os Built to Spill voltaram ao passado, mas no caso da banda Boise, estado de Idaho, ao disco Keep It Like a Secret, de 2009. Os longos minutos em que levaram ao Parque da Cidade do Porto o seu indie-rock de raiz americana, com os riffs de guitarra que os anos 1990 trouxeram ao mundo, foram um bom bálsamo e complemento à música menos ancorada na guitarra que se ouviu noutros palcos.

A acalmia dos Built to Spill, com aquele estilo espreguiçado de quem poderia tocar um dia inteiro sem se fartar, sem acelerar furiosamente o ritmo e sem sequer que alguém cantasse (claro que o vocalista Doug Martsch, dono da melhor barba do festival, cantou e bem de tempos a tempos, com a sua voz ligeiramente frágil a expressar-se também sobre os desencantos da vida), contrastou por completo com a energia de Danny Brown. O rapper que já lançou o quatro álbuns, o último dos quais (e de grande afirmação) Atrocity Exhibition, de 2016 — e que editará um novo disco “em breve”, do qual revelou uma canção — é todo ele energia e adrenalina. Correndo para um lado e para o outro do palco, saltando e fazendo a festa, Danny Brown foi percorrendo os temas que o notabilizaram no hip-hop norte-americano, com as camadas eletrónicas e industriais das batidas que o diferenciam de parte dos seus pares.

O concerto, no entanto, pareceu apenas converter os já convertidos. Sem a capacidade de gestão de flow e domínio do público que o seu compatriota Vince Staples revelou no ano anterior, também sem as canções mais melódicas e imediatas que fizeram o concerto de A$AP Rocky nesse mesmo ano ser um delírio para centenas de pessoas que o viram no palco NOS  (isto para não ir sequer a outras estrelas que passaram no passado por aquele palco, como Kendrick Lamar), agitou apenas as filas da frente. Lá atrás, ou se dançava timidamente ou (na maior parte dos casos) assistia-se de forma razoavelmente impávida e serena. Talvez de futuro, com um chamariz de novidade que poderá ser um álbum novo, Danny Brown chegue com um hype capaz de justificar o estatuto de segundo cabeça de cartaz da noite, a que não correspondeu por completo.

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Enquanto Danny Brown tentava provocar um pequeno caos no palco principal, Allen Halloween expulsava os seus fantasmas rimando sobre tentações, fé e liberdade no palco Super Bock. “Do Porto até Paris”, com um odivelense a reclamar o seu estatuto de natural de “ODC” na plateia, expunha o racismo incrustado na sociedade em “Raportagem” (Homem africano nato desempregado / Indivíduo considerado o inimigo do estado”), a vida a 200 à hora em que muitos se perdem em “Na Porta do Bar” e esse grande manual sobre arrependimentos, lutas interiores e conversão que é a canção “Bandido Velho”. Também com missão difícil, mas com bastante menos público fruto da concerto (17h), Dino D’Santiago representou a lusofonia mostrando o seu funaná eletrónico que prolonga a tradição renovando-a. Acabou a cantar e dançar no meio do pouco público presente, dizendo de seguida que “desejamos uma nação crioula, uma nação lusófona, bem bonita. Estamos juntos família”.