De onde apareceu toda esta gente, que de repente tornou a Herdade do Cabeço da Flauta um sítio claustrofóbico como nunca o foi por estes dias (nem quando atuou a cabeça de cartaz Lana Del Rey)? Que fenómeno é este que leva adolescentes e jovens adultos a desfalecer junto às grades do palco principal do Super Bock Super Rock, devido ao calor provocado pelo aperto e pelos empurrões? Como é que miúdos de chapéu, tranças, camisolas de basquetebol, joalharia ao pescoço, estão ao lado de rapazes de camisas Ralph Lauren e raparigas de purpurinas na cara, todos juntos a saltar e a cantar uns aparentemente indecifráveis e intraduzíveis versos de uns dos maiores proponentes do rap trap, os norte-americanos Migos?

Quem estiver mais desatento ao fenómeno que é o trap — ramificação do hip-hop para a qual as palavras, geralmente poucas e balbuciadas rapidamente, quase com displicência, servem sobretudo para pontuar batidas graves e festivas que fazem tremer o chão –, poderá ter ficado surpreendido com o que viu este sábado seja altura então de despertar: o trap veio mesmo para ficar, domina os gostos de gente suficiente para encher festivais de verão e no Super Bock Super Rock está-se a tornar aposta anual. Depois de Future, em 2017, e Travis Scott, em 2018, eis outros gigantes do género musical em 2019. Respondem pelos nomes artísticos Quavo, Offset e Takeoff, e juntos formaram os Migos há perto de uma década. O sucesso e impacto na última década é tanto que em 2015 o site Complex, dedicado ao hip-hop, proclamava uma provocação que na verdade era mais texto humorístico: “Dez razões pelas quais os Migos são melhores do que os Beatles”.

[O público no último dia de concertos do Super Bock Super Rock:]

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O melhor talvez seja deixar as piadas de parte, porque isto é a sério — embora sem pretensões a música erudita, muito longe disso. O objetivo é dar o concerto mais enérgico do mundo e isso sente-se, como se o trap dos Migos — que no Meco teve em Janelle Monáe espectadora atenta, surgindo nos ecrãs a dançar em zona sem acesso ao público — tivesse substituído o rock, primeiro, e a eletrónica espampanante de Hardwell, Tiesto e companhia, depois, como grande fenómeno hedonista de adolescentes e jovens adultos.

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A Herdade do Cabeço da Flauta começou a virar discoteca quando DJ Durel, apresentado como “o DJ pessoal de Migos”, disparou nas colunas a voz de Drake e as batidas iniciais de “Sicko Mode”, tema que o canadiano gravou com Travis Scott — isto depois de se ouvir o som de uma arma, objeto de que os Migos são aficionados, a ser carregada. De repente já voava cerveja, o espaço lá à frente que antes era respirável começava a tornar-se minúsculo, DJ Durel pedia às pessoas que erguessem “as mãos no céu e batessem palmas assim”, exemplificando o que queria. Era preciso receber as super estrelas de Atlanta em condições, quais celebridades planetárias e divinas. Mas sê-lo-ão mesmo também em Portugal, se não passam nas rádios mais polidas e não recebem as boas graças da imprensa? O Meco respondeu contundente: basta olharem com atenção para o recinto.

Os truques imagéticos para dar ao espetáculo uma apresentação megalómana estiveram todos lá, das chamas que por vezes surgiram em palco aos disparos de fumo regulares. Mas seria injusto dizer que é isso que cativa multidões — não é. Também não são as letras e as rimas, que lidas atentamente são confrangedoras, e usar o contexto social que dá origem aos Migos para as enaltecer ou legitimar seria perigosamente paternalista, como se a glorificação das drogas, da violência, da luxúria de que são alvo e do “eu” fossem o máximo a que quem cresce como eles pode almejar. O segredo está nas batidas e no modo de balbuciar palavras, vertiginoso, enérgico, quase punk, como se o modo de as dizer tivesse suplantado (suplantou mesmo) em importância o que se quer dizer. Junta-se a isso o auto-tune usado como ferramenta para acrescentar uns pós melodiosos na descarga rap, está ganho o equilíbrio para o mosh pit dançado e cantarolado.

Andando pelo palco de um lado para o outro, os três com igual experiência nas rimas que quase gritavam — mas Quavo é o mais habilitado para a comunicação com o público, e pediu barulho, mostrando os dentes metalizados para a câmara para gáudio geral —, foram mantendo o entusiasmo nos píncaros durante um concerto curto no qual se ouviram os êxitos quase todos: “Kelly Price” (que gravaram com Travis Scott), “Slippery”, “Narcos”, “T-Shirt”, “Walk It Like I Talk It” e por aí fora…

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Em “Open It Up”, canção que é também expressão repetida até à exaustão pelos Migos, pedem que se abra “um grande círculo no lado direito”, para o mosh. Riam-se, dentes todos a brilhar, eram eles que pediam ao público satisfações (constantemente desafiando-o a fazer barulho, a portar-se à altura da dimensão de quem recebiam) e não o contrário. No final, abandonaram o palco sem dar cavaco, a missão estava cumprida, deixando DJ Durel a tocar hip-hop dançante até também este sair sem mais palavras. Foi um tornado que deixou o Meco a suar e a ferver, foram os Migos que se estrearam em Portugal dando um concerto para milhares e milhares de acólitos. Não convenceram quem lhes torce o nariz, mas deram molas nos pés a quem encheu o recinto.

Janelle Monáe, “mulher negra queer do Kansas”, quer um mundo melhor

Janelle Monáe foi o primeiro nome internacional a pisar o grande palco — 1,52 m de artista irrequieta que voltou a aproximar o Super Bock Super Rock da habitual estrutura de um espetáculo pop, com jogos de luzes impressionantes, uma curadoria visual irrepreensível, dançarinas sincronizadas e mudanças de figurino. A afroamericana está longe de ser uma estranha para o público português. Depois de se ter estreado no Super Bock em Stock, em 2010, passou duas vezes pelo MEO Sudoeste, em 2011 e 2013, e visitou o país pela última vez em 2014, no Vodafone Paredes de Coura. Pela última vez, até agora.

A digressão “Dirty Computer” (título do último disco, lançado no ano passado) trouxe-a pela quinta vez e o concerto deste sábado encerrou a agenda europeia da cantora. Monáe prossegue dividida entre dois amores: a soul e os ritmos funk, muito mais presentes na discografia inicial da cantora (The ArchAndroid, o primeiro álbum, apareceu em 2010) e as sonoridades pop e R&B, aproximações a um registo mais comercial que se refletiram na sua própria imagem. O espetáculo que deu foi enérgico, com uma Janelle irrepreensível, quer do ponto de vista vocal, quer na afabilidade com que comunicou com o público.

“Crazy, Classic, Life” abriu as hostilidades. “Screwed” veio em segundo lugar e “Django Jane” completou o tríptico de apresentação do mais recente álbum. À terceira música, ocupou um trono posto no centro do palco de propósito para a ocasião. Janelle Monáe, de 33 anos, entretém e convence até para o mais incrédulo e desconhecedor dos espectadores do seu talento. “Quero criar memórias esta noite. Quero ser uma memória para vocês”, desabafou entre temas. Para o palco, trouxe as mesmas calças que usa no videoclipe de “PYNK”. Intensifica-se o discurso feminista — a peça faz lembrar uma vagina e, enquanto isso, as imagens projetadas no ecrã atrás eram de cuecas, virilhas, flores a desabrochar e gatos felpeludos.

“You Are My Everything” foi dedicada a Prince, amigo e mentor de Monáe. A morte do cantor, em 2016, afetou profundamente a artista do Kansas, que admitiu que teve de fazer uma pausa na música depois disso. O novo álbum, Dirty Computer, foi profundamente inspirado por Prince, que estaria a trabalhar nele juntamente com Janelle Monáe. O tema “Make Me Feel” terá inclusivamente sido escrito em parte por ele. E foi talvez por isso que, no concerto do Super Bock Super Rock, Monáe encarnou o cantor (e um bocadinho do de Michael Jackson) durante a canção. Sozinha em palco, dançou em contraluz até colocar uma guitarra ao ombro. Nunca o espírito de Prince esteve tão presente como naqueles curtos minutos.

Há muito que Janelle Monáe, “uma mulher negra queer do Kansas”, juntou a sua voz à luta pelos direitos das mulheres e das minorias fez questão de o lembrar, primeiro em “I Like That”, que dedicou “a todas as mulheres” (“esta música é sobre amor-próprio e sobre abraçar aquilo que nos torna únicas, mesmo que deixe os outros desconfortáveis, como a maneira que nos vestimos ou a forma como penteamos o cabelo”, disse), e depois durante uma versão mais calma de “Cold War”. “Temos de continuar a lutar pelos direitos das mulheres, pela comunidade LGBT, pela classe trabalhadora, pelos deficientes, pelos negros. Porque a vida dos negros importa”, declarou perante uma ovação.

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Apelando também à defesa dos imigrantes, porque “não vivemos em jaulas”, a norte-americana apontou o dedo aos políticos corruptos e a Donald Trump. “Não podemos deixar que aqueles que apelam ao ódio governem o país”, disse, antes de começar a cantar os primeiros versos de “Tightrope”. O seu primeiro single oficial, um regresso ao passado, serviu de despedida antes de um abandono repentino do palco e da enchente que se seguiu para Migos.

O coração aberto de Rubel tem pop digital, samba, MPB e jazz

Antes de Janelle Monaé e antes de ProfJam, rapper que foi o único português este ano no palco principal do festival Super Bock Super Rock, a revelação da tarde veio da América do Sul. Rubel, assim se chama o guitarrista, compositor e cantor brasileiro que está entre os grandes talentos recentemente revelados da música brasileira (a par, por exemplo, de Cícero Rosa Lins ou de Tim Bernardes e a sua banda O Terno), começou o seu concerto por volta das 18h.

ProfJam chegou mesmo à primeira liga da música portuguesa

Apareceu de alças e gorro na cabeça, barba por aparar, pose blaisé de rapaz romântico pouco interessado nos afazeres chatos do quotidiano. Na música, Rubel é mesmo romântico inveterado, derrete corações com a sua pop delicada e aconchegante, que tantas vezes descamba para o samba e para o jazz, com as declarações de amor das cantigas. Apresentou-se com uma banda alargada, que incluía um teclista, um baterista, um contrabaixista, um DJ, um guitarrista, um trombonista, um saxofonista e um talentoso — e muito interventivo — trompetista.

O início, ainda o sol brilhava forte na paisagem campestre da Herdade do Cabeço da Flauta, fez-se ao som de “Colégio”, canção do seu segundo álbum de Rubel, Casas, que expandia alguma da intimidade da estreia discográfica para sonoridades igualmente delicadas, mas mais expansivas e eletrónicas (flirtando até, aqui e ali, com o hip-hop). Seguiu-se “Cachorro” e só de seguida as primeiras palavras de Rubel ao público: “Boa tarde Portugal. Meu nome é Rubel, é um prazer muito grande estar aqui hoje”.

Com a guitarra acústica, para ele violão, nos braços, foi guiando a banda naquela canção muito sua, nem samba-jazz descendente da bossa-nova nem MPB na senda de Caetano Veloso e companhia, mas súmula das duas com um acrescento de composição de digital. Quando chegou à canção “mais conhecida” que já fez, como a apresentou — “Quando Bate Aquela Saudade”, um êxito com dezenas de milhões de visualizações no Youtube — pôs o público a cantar. Via-se já, nesse momento, uma bandeira do Brasil e o diretor do festival, Luis Montez, a cantar a letra do hit.

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Foi porém quando Rubel apresentou ao vivo as canções feitas em parceria com Rincon Sapiência (em “Chiste”) e Emicida (“Mantra”), rappers do seu país, a última das quais tocada com imagens de violência policial no ecrã que tinha atrás de si e com um #elenão a rematar (em direção a Bolsonaro), que elevou o nível do concerto. A atuação terminou quase em beleza com essa belíssima canção de coração aberto que é “Partilhar”. Só não acabou assim porque ainda havia tempo para mais: “Dá mais uma”, e a escolhida foi “Sapato”. Acabou aplaudido em mais um concerto em Portugal, depois de esgotar por duas vezes a sala lisboeta de concertos Musicbox e após atuar no festival MIL e em cidades como Espinho e Famalicão. A popularidade tem crescido e o talento de Rubel justifica, claramente, salas de concerto maiores e mais público português nos seus concertos.

Depois de uma loucura chamada ProfJam, Masego fez a festa no palco secundário

ProfJam tinha então acabado quando Masego subiu ao palco EDP, na outra ponta do festival, pelas 20h45. E o espaço estava cheio para o receber — de braços abertos. Acompanhado por um teclista, um baterista, um guitarrista/baixista e uma vocalista, o artista norte-americano transformou o palco secundário do Super Bock Super Rock numa grande festa ao ar livre, com o por do sol e as árvores da Herdade do Cabeço da Flauta como pano de fundo e o seu “TrapHouSeJazz” — o nome que dá à música, única, que cria misturando diferente géneros, como o R&B, o funk ou o jazz —, como banda sonora.

Com um primeiro álbum centrado na figura da mulher, “Lady Lady”, Masego não esqueceu o público feminino presente, e atirou rosas vermelhas para a multidão. Simpático e divertido, foi um bom aquecimento para os nomes que se seguiram no palco Super Bock. É só pena que a segunda parte do concerto tenha coincidido com a subida ao palco de Janelle Monáe, o que certamente terá deixado muitos espectadores divididos.

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Disclosure, uma grande festa ao ar livre

Foi aos irmãos Howard e Guy Lawrence que coube fechar o Super Bock Super Rock com um grande serão de música eletrónica dançante. Os Disclosure, em modo Dj Set, subiram ao palco principal do festival quando Mike El Nite a terminar a atuação no Palco Somersby, não muito longe dali. Isso explicou a correria desenfreada de festivaleiros pelo recinto, ainda que muitos tivessem escolhido não arredar pé da zona do palco principal após o concerto de Migos, um dos nomes fortes deste último dia.

Os irmãos Lawrence começaram com “When A Fire Starts To Burn”, o primeiro tema de um set recheadinho de grandes hist, como “F For You”, uma colaboração com Mary J. Blige, e “White Noise”. Apesar da hora tardia (já passava da 1h), o público do Super Bock Super Rock não mostrou sinais de cansaço, e atirou-se de bom grado à eletrónica dos Disclosure e à dança. Foi um final electrificante depois de três dias festival com alguns bons concertos mas nenhum suficientemente entusiasmante para fazer o ambiente aquecer. O grande ponto positivo desta edição do Super Bock Super Rock foi, surpreendentemente, o lugar onde decorreu.

Apesar das dúvidas que o regresso ao Meco fez levantar (quem passou pelas edições na Herdade do Cabeço da Flauta não foi capaz de esquecer a poeira), o Super Bock Super Rock voltou, este ano, a parecer-se mais com um festival de verão. Um evento deste género pede ar livre, uma boa paisagem e, caso havendo essa possibilidade, uma zona de campismo. Três coisas que o Parque das Nações, uma zona residencial e de escritórios com prédios altos, não podia oferecer (ainda que o Tejo estivesse mesmo ali ao lado). Para quem gosta de viver a verdadeira experiência festivaleira, esta renovada edição junto à praia só pôde ter deixado boas memórias.