Desde Lana Del Rey na quinta-feira que não se via um concerto destes no palco principal do Super Bock Super Rock: gritos efusivos, braços no ar a toda a hora, uma maré imensa de gente a cantar em coro os refrões todos, da primeira à última canção. E o protagonista desta efervescência é português e parece meio personagem de cartoon meio líder de cartel, de bigode farto (uma mudança recente no visual), vestido de branco de cima a baixo, a condizer com a indumentária do baterista, Gui, e do DJ que também apoia nas rimas e cantorias, Mike El Nite. É Mário Cotrim, conhecido no universo do hip-hop pelo nome artístico ProfJam.

A promoção ao palco principal do festival, depois de no ano passado ter deixado uma horda de gente aos saltos no palco secundário (então ainda no Parque das Nações), é uma abordagem que começa a ser regular do festival, que já havia testado o mesmo com os também portugueses Capitão Fausto e Slow J. A fórmula é simples: num ano, colocar uma banda ou um artista a comprovar o hype no palco secundário; no seguinte, incumbi-lo ou incumbi-los de justificar o burburinho crescente no principal (e quem poderá fazer o mesmo no próximo ano senão Dino D’Santiago ou Conan Osiris?).

Com os Capitão Fausto e Slow J, a aposta de crescimento tinha resultado na plenitude. Mas a escolha de ProfJam para abrir o palco principal este sábado revelou-se também decisão feliz: o entusiasmo e a ovação final contrastaram por completo com a apatia generalizada sentida no dia anterior.

O “fenómeno” divide opiniões como poucos: ou se ama ou se odeia. A internet está cheia de fãs (a maioria dos quais miúdos que ocuparam este sábado as filas da frente junto ao palco) e de haters (a maioria dos quais graúdos), mas os primeiros chegam e sobram para fazer de um concerto quase uma festa de estádio, com direito até a breve mosh pit e tudo. O segredo está nas melodias das linhas instrumentais de Lhast e do usado e abusado auto-tune, na energia dos temas que pedem saltos, no controlo do andamento de um espetáculo ao vivo que Gui, El Nite e Cotrim revelam em palco.

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A forma como o público cantou do início ao fim prova que não é verdade que os miúdos não ouvem álbuns completos. O alinhamento parecia só ter singles: ProfJam arrancou com “À Palavra”, entrando em palco enquanto gritavam o seu nome (cortesia de um pedido de Mike El Nite ao público). “Queq Queres” foi uma das fugas ao presente e antecedeu “Minha”, onde ProfJam canta “Não nasci pa’ ser perfeito, nasci pa’ me tornar texto, nenhum sentido p’além do sexto”. “Queq Queres” foi um dos temas mais antigos que cantou. O concerto focou-se nos temas do primeiro álbum editado este ano e em alguns singles revelados pouco antes.

ProfJam preferiu “abraçar a mudança” a resistir-lhe. Com o primeiro álbum eleva a fasquia do trap português

ProfJam, de microfone na mão, ia andando de um lado para o outro, só muito ocasionalmente correndo (é preciso guardar o fôlego), sem falhas na entrega das rimas e notas de canto; Mike El Nite, que também é rapper, esteve como multi-funções (“DJ on the motherfucking mic” como foi apresentado), lançando batidas mas sempre pronto quando ProfJam precisava de respirar e havia uma rima para “cuspir”, como se diz na gíria; e Gui, o baterista, garantindo que este não é só mais um espetáculo de trap, a acelerar o ritmo nos momentos certos.

Por vezes com as palmas da mão encostadas uma à outra em sinal de agradecimento, ProfJam dava conta da importância do momento: “É um orgulho do c****** estar aqui hoje. Há um ano apresentei pela primeira vez ‘Água de Coco’ no Super Bock Super Rock, sei que estava muita gente lá”. Estava, de facto. Ei-lo agora, mais crescido, a rimar e cantar sobre o ciclo vicioso da adolescência (sua e de muitos dos seus ouvintes) em “Na Zona”, um “som storyteller” (assim o apresentou) onde revive a juventude para lançar um alerta: “Bem fumado na zona / concentrado na zona / eu ‘tou chillado na zona / fechado na zona / ‘tou trancado na zona / bloqueado na zona”.

“Matar o Game”, um dos singles soltos que lançou no Youtube antes da edição do primeiro álbum — que por sua vez sucedeu a algumas mixtapes —, não foi só cantado em coro, fez abrir um círculo lá à frente para o mosh, que se tornou prática recente em concertos de rap trap. Antecedeu um freestyle (decorado ou não, pouco interessa) que levou ProfJam de volta ao tempo das batalhas de rimas da Liga Knockout, só com o microfone sem música por trás, “já nem és underground / agora és underwater / teu rap é ditadura / o meu é liberdade / isto não é rap, boy, é telepatia”.

Na ponta final, o recinto estava ainda mais cheio. Não seria estranho se muitos campistas tivessem aproveitado para jantar cedo porque estavam quase todos lá para cantar “Xamã” e para dançar “Caveira”. Puxando os galões da editora-agência de artistas que ajudou a fundar em 2016, Think Music, chamou o jovem rapper Yuzi a palco para recriar “Gwapo” (já o haviam feito no ano passado, no palco secundário). “Abrimos em 2016, agora é até sermos caveiras, até sermos carcaças”, dizia. “Quem gosta da Think Music?”, perguntava Mike El Nite para gritaria generalizada.

Em “Mortalhas”, o rapper apontou para as pessoas no público gritando o mantra “ninguém por ti trabalha se não fores tu”, rimas disparadas a uma velocidade vertiginosa já com o “DJ on the motherfucking mic” lá à frente ao seu lado. O interlúdio do seu primeiro álbum serviu para o baterista se levantar e bater com as baquetas uma na outra, letra entoada pelo público porque a frase não era difícil de decorar (“todas as cores vivem dentro do white / no éfe-éfe”).

O momento mais emotivo ainda estava por vir. Mário chamou a sua “cota” Fátima, como lhe chamou, para vir a palco, abraçou-a, cantou “só quero pôr a minha cota à vontade” (canção que gravou com o colega de editora Finix MG, que também esteve no Meco) olhando-a nos olhos. No final, deixou a promessa: “Sem esta mulher aqui — a Fátima, a minha mãe —, não podia estar a ver estas pessoas todas à minha frente. Agradeço-lhe a ela e ao meu pai. Da mesma maneira que ela tomou conta de mim quando era pequenino, vou tomar conta dela quando for velhinha. Prometo aqui e gostava que prometessem o mesmo. Vocês são lindos. Façam barulho para a minha mãe Fátima. Não estão a perceber para mim o que isto significa. Obrigado!”.

“Aquela é a mãe do Prof?”, perguntava uma jovem na assistência, enquanto um outro rapaz dizia: “Vou só ali atrás dar uma linha”. Foi impressionante ver como o hip-hop é hoje outra coisa, face ao que era nos seus primórdios em Portugal. ProfJam, um “beto de Lisboa”, como ele próprio assume na sua música, pôs dreads e betos de camisa Ralph Lauren a cantarem o seu calão, cantando tanto ou mais (e com auto-tune) do que rimou, mostrando que o hip-hop é, para muitos adolescentes, a nova música de massas.

Mike El Nite chorou em palco ao ver o abraço familiar e a emoção de Fátima, mas recompôs-se a tempo de acompanhar o baterista e o rapper no hino de massas “Tou Bem”, já com o produtor, autor de quase todos os instrumentais do disco e agora também rapper Lhast em palco (“sem ele era impossível este álbum ter sido feito”, disse ProfJam). Lhast nem precisava de cantar “eu ‘tou bem / tava na ponta mas agora ‘tou no meio / ‘tou na corrida mas parece um passeio / todos os dias e eu nunca me cansei / eles dizem calma, calma, calma, eu ‘tou straight”. A dada altura calou-se mesmo, deixou que fosse o público a cantar, de telemóvel bem erguido no ar.

Ainda houve tempo para “Malibu” — com ProfJam a descer ao corredor central que separa o público, a despejar água sobre a sua cabeça e sobre a cabeça de fãs —, para “Se Calhar” e para chamar uma comitiva de amigos, colegas de editora e mãe para o palco. “Que se f***, isto é uma noite para a história”, dizia-se. Foi mesmo uma noite para a história de ProfJam, que confirmou ao vivo a chegada ao patamar cimeiro da liga portuguesa. Se o concerto não merece nota mais elogiosa, é porque ainda temos na memória o que Slow J fez no ano passado no palco principal, recriando engenhosamente os arranjos das canções que o notabilizaram, chamando convidados inesperados para palco, como Carlão, e atingindo um maior consenso entre miúdos e graúdos, indies e ouvintes de música ocasionais, fãs de hip-hop e gente que mal quer ouvir falar no assunto. O futuro chegou.