A nova temporada da Companhia Nacional de Bailado (CNB), pela primeira vez programada pela nova diretora artística, arranca a 10 de outubro no Teatro Camões, em Lisboa, com três espetáculos de Hans van Manen, considerado um dos mestres da coreografia do século XX. São três peças neoclássicas de diferentes décadas e permitem compreender a evolução da linguagem do coreógrafo holandês. As mesmas propostas serão depois apresentadas pela CNB em janeiro no Teatro Rivoli, no Porto, e no Festival de Liége, na Bélgica.

“O património coreográfico, a história da dança e a memória são alguns dos eixos programáticos que quero explorar”, resumiu a diretora, Sofia Campos, que pretende reconquistar o público através de atividades mais frequentes no Teatro Camões. A mesma responsável sugeriu que a temporada é de transição, face ao rumo que pretende imprimir à CNB nos próximos anos.

A estreia nacional de uma peça clássica de Martha Graham e a remontagem de um espetáculo de Clara Andermatt, um dos últimos trabalhos do extinto Ballet Gulbenkian, são outros dos pontos-fortes dos próximos meses, adiantou Sofia Campos. A apresentação pública da programação acontece nesta quarta-feira, às seis da tarde, no Cais das Colunas, em Lisboa, com a presença prevista da ministra da Cultura, Graça Fonseca.

Sofia Campos, de 44 anos, assumiu funções em setembro do ano passado, depois de três anos no conselho de administração do Teatro Nacional D. Maria II, e sucedeu a Paulo Ribeiro, que se demitiu com críticas à tutela. “Falta dinheiro e vontade política para levar a CNB para a frente”, declarou ao jornal “Público”.

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Esta semana, em entrevista ao Observador, Sofia Campos não quis comentar a saída de Paulo Ribeiro, “porque é natural que cada pessoa lide de forma diferente com as situações”. Como gestora cultural, perante uma pergunta sobre o trabalho do Ministério da Cultura nesta legislatura, lamentou a constante mudança de titulares da pasta. Foram três os ministros da Cultura em quatro anos de Governo: João Soares, Castro Mendes e Graça Fonseca.

“Quero acreditar que o caminho que estamos a percorrer é no sentido de todos querermos mais e melhor”, declarou Sofia Campos. “A inconstância dos lugares de tutela pode prejudicar o trabalho, porque há sempre vários recomeços. É difícil falar de uma regularidade e de uma certa tranquilidade se tivermos ministérios com alguma instabilidade.”

Quanto à relação da CNB com as tutelas – Organismo de Produção Artística (Opart), empresa pública que administra a CNB e o Teatro Nacional de São Carlos, e que por sua vez responde ao Ministério da Cultura e ao Ministério das Finanças –, a diretora esclareceu que “o diálogo tem sido produtivo” e as partes “estão a trabalhar no mesmo sentido”.

A polémica sobre salários e 35 horas semanais de trabalho na CNB e em São Carlos, que em junho levou a uma greve prolongada dos trabalhadores técnicos do teatro lírico, é um assunto a que Sofia Campos está “atenta”. “Peço para acompanhar o que me é de direito saber, mas as negociações estão a decorrer e nunca envolveriam diretamente a direção artística, são entre a administração e representantes sindicais”, explicou.

Martha Graham pela primeira vez

A temporada 2018-2019 decorreu ainda com a programação que Paulo Ribeiro tinha deixado em agenda, pelo que a nova época é a primeira com o cunho de Sofia Campos. Em rigor, os primeiros espetáculos de 2019-2020 arrancaram há poucos dias no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, com “Madrugada”, de Victor Hugo Pontes, e “Annette, Adele e Lee”, de Rui Lopes Graça. No entanto, o início oficial da temporada será a 10 de outubro, uma quinta-feira, com três coreografias de Hans Van Manen: “Adagio Hammerklavier” (1973), já antes dançado pela CNB, “In The Future” (1986) e “Short Cut” (1999), estas duas em estreia nacional.

Três ensaiadores próximos do coreógrafo já estão a trabalhar com os bailarinos da CNB e o próprio chegará a Lisboa na próxima semana. “Adagio Hammerklavier” é descrito no programa da companhia como “o bailado mais lírico e académico de Hans van Manen e traduz uma visão lúcida e analítica das oscilações emocionais que ocorrem na vida de qualquer pessoa”.

[excerto de “Adagio Hammerklavier”, de Hans van Manen]

Para os meses seguintes, são estas algumas das propostas:

  • Nova criação de Paulo Ribeiro, “Le Chef D’Orchestre”, entre 14 e 17 de novembro, com vinte intérpretes masculinos e femininos. Uma coprodução com o Théâtre National de Chaillot, de Paris, já pensada antes da nomeação da atual diretora;
  • “O Quebra-Nozes”, do antigo diretor da CNB Mehmet Balkan, entre 6 e 22 de dezembro, tal como no Natal de 2018 (seguirá para o Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, a 28 e 29 de dezembro);
  • “Chronicle” (1936), da coreógrafa americana Martha Graham (1894-1991), um dos nomes cimeiros da dança do século XX, de 11 a 14 de março. Será a primeira vez que a CNB monta um trabalho de Graham, neste caso uma peça descrita como “resposta da coreógrafa à ameaça do fascismo na Europa”;
  • Também de 11 a 14 de março: “A Mesa Verde” (1932), do alemão Kurt Joos, peça apresentada pela CNB em 1984, no Teatro São Luiz, em Lisboa;
  • “O Canto do Cisne”, de Clara Andermatt, revisitação de uma das últimas peças dançadas pelo Ballet Gulbenkian, em 2005. De 14 a 17 de maio;
  • “La Bayadère”, na versão de Fernando Duarte, um dos grandes clássicos do reportório da CNB, de 25 a 28 de junho.

A temporada “procura equilibrar a missão da CNB, para assim consolidarmos um futuro que há de vir e que não temos pressa em alcançar”, declarou Sofia Campos, sugerindo tratar-se de uma programação de transição. “São escolhas de equilíbrio entre o que já é um património que conhecemos da companhia e novo reportório. A CNB tem sofrido muitos altos e baixos e interessa-me consolidar algumas ideias, para começar a desenvolver os eixos de forma mais profunda”, acrescentou.

Sofia Campos, de 44 anos, está à frente da direção artística da CNB desde setembro do ano passado

Orçamento e tensão com bailarinos

Com licenciatura em dança (Escola Superior de Dança) e mestrado em práticas culturais (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa), a nova diretora artística tem larga experiência como gestora cultural. Foi, por exemplo, diretora de produção na companhia Re.Al, do coreógrafo João Fiadeiro (2003-2011), e codiretora da Associação Cultural Alkantara (2012-2014), que desde 2006 organiza em Lisboa o festival bienal de artes performativas Alkantara.

Defende que a CNB deve ser tanto uma companhia de reportório, com dança clássica, como uma companhia vocacionada para a dança moderna e contemporânea, “o que não quer dizer que haja um ‘melting pot’ em cada temporada”, ressalvou. “Se não for esta companhia a tratar o património coreográfico e a remontar peças que exigem muitos recursos, é difícil que outras companhias o façam, porque têm outras características e missões”.

O afastamento do público do Teatro Camões, sede da CNB, é uma realidade dos últimos anos que Sofia Campos pretende ultrapassar através de atividades frequentes e de mais ações de comunicação pública.

“Há uma sensação de que não havia regularidade e estamos a tentar chamar novos públicos e a manter interessado aquele que é o público habitual. Se só tivermos um espetáculo de dois em dois meses, não criamos hábitos. Temos de ser sempre alguma coisa a acontecer, pode não ser um espetáculo de noite inteira, podem ser cursos, conferências ou conversas à volta da dança”, disse a diretora.

Sem adiantar qual o orçamento previsto para o próximo ano, explicou que não é de agora a muito falada redução nos valores de mecenato com origem na Fundação EDP. Desde a temporada 2018-19, essa comparticipação passou de 375 mil euros anuais para 100 mil. Mas a CNB está a procura de outros mecenas. “Acho que a Fundação EDP quererá manter esta relação de 21 anos, mas estamos a conversar com outros e temos sido convocados para encetar parcerias”, adiantou Sofia Campos.

A alegada tensão entre os 70 bailarinos da CNB e a anterior direção artística está por agora resolvida, porque “o diálogo tem sido bom e frequente”, segundo Sofia Campos. “Acho que há uma viragem. Acompanho o trabalho diário dos bailarinos, explico as propostas, discutimos problemas e possibilidades. Muitos bailarinos estão aqui há muito tempo e a carreira é curta e de desgaste rápido. Todos querem resultados. São tempos diferentes: o tempo da direção, para construir uma programação, e o tempo da carreira dos bailarinos, que têm urgência de fazer mais ou de fazer determinados papéis. Se for essa a tensão, é salutar que exista.”