Um documento em que José Berardo pede o levantamento do arresto de obras do Museu Coleção Berardo inclui a descrição pormenorizada de factos até agora desconhecidos ou nunca confirmados oficialmente. O arresto foi decretado por um tribunal em fins de julho, como forma de garantir o pagamento futuro da alegada dívida de Berardo a três bancos, no valor de quase mil milhões de euros. Berardo veio agora opor-se judicialmente a essa decisão.

José Berardo, empresário madeirense proprietário de uma extensa e valiosa coleção de arte moderna e contemporânea parcialmente cedida ao Estado em 2006 para dar origem ao Museu Coleção Berardo, instalado desde então no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, está debaixo de fogo desde que foi chamado a uma comissão parlamentar de inquérito à gestão da Caixa Geral de Depósitos. Foi a 10 de maio. As respostas que deu aos deputados – “pessoalmente não tenho dívidas”, “não sou dono de nada” –provocaram um coro de críticas e fizeram-no cair em desgraça.

O documento de oposição ao arresto, a que o Observador teve acesso nesta sexta-feira, foi redigida pelo advogado Carlos Costa Caldeira e entregue a 19 de setembro no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. Eis algumas das novidades ali registadas.

1 – As obras do museu foram mesmo avaliadas em 2009

A notícia foi avançada a 20 de maio deste ano pelo “Correio da Manhã”: a pedido do comendador, a Coleção Berardo tinha sido avaliada em 2009 em 571,1 milhões de euros pela galeria de arte Gary Nader, com sede em Miami, EUA. Segundo o mesmo jornal, esta informação surgiu num relatório de 2011 do Banco de Portugal. Acontece que até hoje nem o próprio Berardo nem os seus porta-vozes tinham confirmado publicamente a existência de tal avaliação – que surge agora referida com todas as letras no documento entregue em tribunal.

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A avaliação é um dado importante para se interpretar as intenções de Berardo quanto ao destino das obras da sua coleção. De acordo com vários especialistas em arte contemporânea ouvidos pelo Observador, as avaliações de obras de artes são muito caras, difíceis e demoradas. Implicam que os avaliadores observem as peças no local, para apreciarem pormenores estéticos e perceberem o estado de conservação.

Além disso, o valor final apontado tem implicações sérias: compromete quem avalia, cria uma expectativa no proprietário e dá um sinal ao mercado da arte (a quem queira vir a comprar as obras em questão e aos que comprem obras dos mesmos criadores).

Não é certo se foi Berardo quem pediu e pagou a avaliação de Gary Nader, mas porque é que tal avaliação foi feita? E porquê em 2009? Note-se que o valor achado em 2006 por uma avaliação da leiloeira Christie’s, a pedido do Ministério da Cultura, cifrava-se em 316 milhões de euros e era esse o valor que válido até dezembro de 2015 caso o Estado quisesse comprar a Coleção Berardo.

Em agosto de 2008 o então ministro da Cultura José António Pinto Ribeiro encontrou-se com um responsável pela consultora financeira UBS para pedir que esta analisasse a avaliação da Christie’s, mas não se sabe se a UBS avançou, revela uma resposta de 2012 que o Governo deu à então deputada socialista Gabriela Canavilhas. Não se sabe qual a intenção de José António Pinto Ribeiro.

Foi também em 2008 que houve, alegadamente contra a vontade de Berardo, alterações profundas nos estatutos da Associação Coleção Berardo (controlada pelo empresário e proprietária das obras de arte, é uma das partes que subscreveram a criação do Museu Berardo no Centro Cultural de Belém).

Caso tenha sido o próprio comendador a contactar Gary Nader em 2009, será que pretendia depois vender os quadros mais valiosos ou até renegociar com o Estado uma nova cifra mais a seu contento?

Museu Berardo foi criado em 2006 através de um protocolo entre o comendador e o Ministério da Cultura, renovado em 2016

2 – Estado e banca dizem que não falavam sobre Berardo

Em 23 de novembro de 2016, Berardo assinou com o ministro Castro Mendes uma renovação do protocolo de 2006 que tinha permitido criar o Museu Coleção Berardo (protocolo agora válido até dezembro de 2022). Nessa altura, já circulavam suspeitas de que a banca, nomeadamente a Caixa Geral de Depósitos, pretendia penhorar as obras do museu para reduzir as perdas com os créditos contraídos por Berardo (cerca de 350 milhões de euros, além, sabe-se hoje, de alegadas de dívidas ao BCP e o BES de mais de 610 milhões). Pressionado pelas dúvidas, o ministro declarou ao jornal “Público” no verão de 2017: “O Governo não teve conhecimento à data dessa renovação, tal como não tem à data de hoje, da existência de qualquer penhora”.

Em julho último, um porta-voz de Berardo disse ao Observador que antes da renovação de 2016 o empresário tinha sido questionado pelo Governo (o Ministério da Cultura estava, e permaneceu, integrada na Presidência do Conselho de Ministros) e “garantiu não existir qualquer penhora sobre as obras”, que aliás “nem poderia existir porque não foram dadas em penhor nem a proprietária da coleção deve qualquer quantia a terceiros”.

Até agora, tal como o Observador escreveu em julho, sabia-se que o Ministério da Cultura não tinha feito contactos prévios oficiais com Caixa para saber se haveria ónus associados às obras de arte do museu. O que o advogado de Berardo vem agora dizer ao tribunal é mais do que isso: que a Caixa, o BCP e o BES se queixaram em 2016 de “não terem sido consultados, nem informados” da renovação do protocolo.

Ou seja, presumivelmente, nem o Estado nem o banco público nem a banca privada comunicavam uns com os outros, mesmo estando em causa montantes elevadíssimos. É um dado novo e faltará esclarecer os motivos para essa falta de comunicação, se é que foi real.

3 – Berardo quis mesmo vender 16 quadros do museu

Até agora o empresário nunca tinha comentado as notícias segundo as quais em 2018 tentou vender 16 obras do acervo do museu na leiloeira Christie’s de Londres. Na oposição agora apresentada pelo seu advogado, lê-se que o empresário madeirense de facto “pretendeu alienar 16” obras, das 862 que foram depositadas inicialmente no museu.

Até surge o valor concreto que se previa alcançar com a venda: mais de 221 milhões de euros. “E nem se venha dizer que essas 16 obras constituem as obras seminais da coleção, pois a maior parte dessas obras não estiveram expostas no núcleo permanente do museu por um grande período de tempo e ninguém se permitiu dizer que o museu perdeu a condição de um dos maiores museus de arte moderna e contemporânea”, argumenta o advogado.

Pintura de 1923 de Piet Mondrian terá sido uma das 16 obras do museu que Berardo quis vender em Londres

Porque é que a venda das 16 obras é relevante? Essa intenção foi travada pela Direção-Geral do Património Cultural, através de um parecer jurídico emitido a 18 de agosto de 2018, mas numa primeira fase foi alegadamente consentida pelo ministro Castro Mendes, o que este desmentiu categoricamente.

O facto de Berardo querer vender favorece a narrativa de que quis desmantelar o museu aos poucos e só constituiu a coleção para a vender uns anos depois a preços elevados, o que, a ser verdade, faz cair por terra os pressupostos que levaram o Estado a criar o museu e a investir nele todos os anos muitos milhões de euros dos contribuintes.

Outros factos relevantes da oposição judicial de Berardo foram noticiados pelo Observador na manhã desta sexta-feira.