Frank Sinatra ensinou-lhe duas coisas: a cantar em inglês e a fazer do palco casa de receber amigos. Por isso, mesmo escapando “à moda dos alfacinhas”, o Coliseu do Porto viu-se lotado para a primeira das duas últimas atuações do canto (dia 8 atua em Lisboa). Foi a despedida de Carlos do Carmo num palco apetrechado de outros quatro músicos, uma mesa com um xaile e memórias em cima, um copo de água e um ecrã gigante, para que o ajudem a contar em duas horas como se constrói uma carreira de cinquenta anos.

O carrossel de emoções começou logo ao fim da segunda canção e da grande ovação do público ao artista. Assumidamente emocionado, porque “os velhos controlam-se com maior dificuldade”, Carlos do Carmo soube que os amigos portuenses sabiam de cor como cantar “se uma gaivota viesse”. Continuaram em “Canoa” — ou “canoua” — numa pronúncia nortenha que lhe sabe bem ouvir.

Afinal, pode ser Lisboa a sua cidade. mas “sem querer ser simpático, porque já não tenho habilitações literárias para isso, a cidade onde mais gosto de tocar é no Porto”, admitia ali logo em jeito de anzol para agarrar a plateia. “É talvez a única cidade do país onde ou se gosta ou não se gosta” e até se devia estudar o fenómeno artístico do Porto. Ficou a dica para futuros curiosos.

Carlos do Carmo: “O meu tempo é agora, estou vivo”

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O fato e a gravata continuam a ser imagem de marca que já tinha aos 31 anos, quando, em imagens a preto a branco na tela, respondia a quem o acusava de se desviar do fado, que cantar é uma força vinda de dentro. Por isso iria cantar sempre, fosse fado ou outra canção qualquer. O Carlos de 80 não se inibe de provocar o da altura, já bom falante e expedito de pensamento. “A lata que o gajo tinha com 31 anos”, admite.

Com a calma que sempre teve e agora ainda mais alimenta, Carlos do Carmo ia revivendo durante o concerto momentos da carreira, principalmente em fado clássico com guitarra portuguesa, guitarra, baixo e pinceladas aqui e ali de clarinete, e com letras velhas e novas que escorregavam à conta de alguns goles de água (o whisky de que tanto gosta teve de ser largado por recomendação expressa do “veterinário”, revela). “Bailado” fez confluir a letra e a situação:

“Não sei voltar ao passado,
Esta noite derradeira”

De quando em vez, lá apareciam amigos especiais no ecrã gigante, como Ary dos Santos, que veio relembrar como eram “Os Putos” quando a primavera ainda era a estação da vida dos dois. Mas também Bernardo Sassetti e a mãe Lucília, “dos olhos amendoados”, não faltaram. Dos amigos presentes em corpo no Coliseu, houve quem merecesse um agradecimento especial: a atleta Rosa Mota, os médicos António Travassos e Sobrinho Simões, por exemplo, e também “O Tino”, o “amigo anónimo” jamais esquecido que pôs Carlos do Carmo a dormir no mesmo hotel que o ídolo Sinatra, obrigando-o a acabar um concerto mais cedo e a esperar horas no hall de entrada só para ver passar e acenar “a voz”.

E com um “Cheirinho” falou-se do que será o próximo disco, que continuará a ser gravado depois do concerto em Lisboa, de 9 de novembro, um trabalho que diz ser anti-comercial, com letras de artistas como Pedro Abrunhosa, Herberto Helder, Hélia Correia, Vasco Graça Moura e Jorge Palma.

Depois do Coliseu do Porto, o fadista apresenta-se no Coliseu dos Recreios no próximo sábado, 9 de novembro.

Esta é uma despedida dos palcos mas não da música. O menino que cantarolava “por cima” da rádio vai permanecer, até porque “cantar é um afastamento da morte”, como escreveu Mia Couto em versos que passaram a ser doutrina do fadista.

Talvez por isso, no fim de “Lisboa Menina e Moça” (e do concerto), que culminou em mais de quatro minutos de aplausos, e em rosas brancas e vermelhas que lhe foram ter ao palco, Carlos insistiu à revelia da vontade da plateia cantar longe dos microfones, sem qualquer sistema de som, e obrigou os amigos ao silêncio total.

Sai “para não estar em decadência ao cima do palco”, disse ao Observador. A anca dói e fá-lo coxear um pouco, na saída. É o “Inverno” de Carlos do Carmo. Mas insiste em deixar ecoar pelas paredes do Coliseu que “por morrer uma andorinha não acaba a primavera”, de mão no bolso como quem dá uma aula.