O humorista Carlos Pereira considera que a resposta do futebolista maliano Marega aos insultos racistas de que estava a ser alvo num jogo de futebol “pode ser o iniciar de algo que era preciso” na sociedade portuguesa.

No dia 16 de fevereiro, o avançado do FC Porto Moussa Marega recusou-se a permanecer em jogo e abandonou o campo, ao minuto 71, após ter sido alvo de insultos racistas por parte de adeptos do Vitória de Guimarães, numa altura em que o FC Porto vencia por 2-1, resultado com que terminou o encontro da 21.ª jornada da I Liga.

Para Carlos Pereira, cujo trabalho se debruça sobre o racismo, a atitude de Marega “pode ser o iniciar de algo que era preciso”. “Eu costumo aplicar esta frase: é impossível, até alguém fazer”, afirmou, em declarações à Lusa.

Embora não seja inédito jogadores de futebol serem alvo de insultos racistas em jogos, em Portugal foi a primeira vez que algum pediu para abandonar a partida.

Marega marcou, festejou a apontar para o braço, fugiu de cadeiras, ouviu insultos racistas e saiu – tudo em dez minutos

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Entretanto, recordou Carlos Pereira, “o Nélson Semedo [antigo jogador do Benfica, atualmente no FC Barcelona], que já foi vítima daqueles adeptos do [Vitória de] Guimarães, disse que se fosse hoje faria igual”.

“Não sabemos se faria ou não, mas a sensação com que fico é que a partir de agora as pessoas terão mais à vontade para reagir, caso isto volte a acontecer”, considerou.

Quando Marega pediu para abandonar o jogo, vários jogadores de ambas as equipas tentaram demovê-lo, mas o maliano manteve a sua intenção e foi substituído, depois de o jogo ter estado interrompido cerca de cinco minutos.

Depois do jogo, em conversas com amigos, Carlos Pereira ouviu alguns discordarem da atitude de Marega: “Acham que ele se devia ter mantido em campo e respondido com golos e uma boa exibição. Mas isto não existe, a vida não é um filme. As pessoas são pessoas, as pessoas não são heróis, não têm que ser”.

O humorista estava a assistir ao jogo, na televisão, e achou “tudo muito estranho”, nomeadamente “o árbitro não interromper o jogo”, embora admita “que é uma coisa um bocado sensível, no sentido em que quando este tipo de coisas acontece ninguém sabe muito bem como lidar”.

“Estamos tão habituados a, mesmo que aconteça, não reagir, não fazer nada, que quando é preciso uma ação ninguém sabe muito bem como reagir. Ficamos assim um bocado à toa, ‘vamos limitar-nos a seguir o protocolo e manter isto e despachar, porque temos coisas para fazer e cada um tem que ir para sua casa'”, disse.

A reação dos comentadores desportivos foi “uma das coisas que mais confusão” fizeram ao humorista: “O racismo é o único crime em que a culpa é facilmente imputada à vítima. Em que quem é vítima é que tem que se sentir mal às tantas e pedir desculpa. O comentador a dizer: ‘ele tem que perceber que isto é futebol, mexe com as pessoas’… Não, não é. Não é suposto o futebol ser aquilo”.

Carlos Pereira recorda-se ainda de ter ouvido, “no pós-jogo, naqueles programas de análise de jogo, os comentadores dizerem ‘não, isto não é racismo, não vi racismo nenhum'”.

“Costuma ouvir-se isto muitas vezes quando acontecem atos racistas, há uma tendência a dizer-se ‘isto não é racismo’. Então a minha questão é: então quando é que é? Estou à espera que estas pessoas todas que facilmente se prontificam a dizer que atos claramente racistas não o são um dia esclareçam, pelo menos a mim, o que são para elas atos racistas”, afirmou.

Da próxima vez que um jogador voltar a ser alvo de insultos racistas num jogo de futebol, Carlos Pereira acredita ser “bem capaz que haja outra sensibilidade, por parte de todos os intervenientes, para reagir de outra forma”.

“Esta ação do Marega, pelo menos para isso, vai contribuir de certeza. Para outras ações fora do campo, não será só por causa desta questão do Marega. Será um conjunto de coisas que vão acontecendo, e as pessoas vão vendo, vão perdendo a paciência, o pote vai enchendo”, disse, ressalvando não querer “estar aqui a assustar as pessoas”.

Em Portugal, quando alguém era alvo de insultos racistas e se queixava “o que vinha do outro lado era ‘lá estão eles, agora também tudo é racismo, qualquer dia já não se pode fazer sons de macacos'”.

“Há esse relativizar, a tentativa de branquear as coisas, que é uma coisa muito da sociedade portuguesa, que eu vou observando”, disse.

Ainda assim, em Portugal, dirigir a alguém insultos racistas é comportamento que configura um crime previsto no Código Penal punido com prisão de seis meses a cinco anos e uma contraordenação sancionada com coima entre mil e dez mil euros.

“Todos sabemos o que se está a passar, mas é como se fosse um complô para camuflar ao máximo ‘isto não é nada’. Mas desta vez foi, tanto foi que o primeiro-ministro veio falar, o Presidente da República veio falar, as pessoas tiveram necessidade de vir falar”, lembrou.

O episódio com Marega mereceu também a atenção de vários meios de comunicação social estrangeiros e foi condenado por clubes de futebol e jogadores de todo o mundo.

“Mais do que o que acontece cá, é a forma como olham para nós. E como isto extravasou o país, teve que se tomar medidas. Acho que vão ser tomadas medidas, por isso esta ação do Marega foi importante, nem que seja por isso também”, referiu Carlos Pereira.

Fonte da Polícia de Segurança Pública (PSP) confirmou à Lusa a identificação de várias pessoas suspeitas de dirigirem cânticos e insultos racistas a Marega, sem adiantar o número de suspeitos, acrescentando que continua a efetuar diligências para identificar outros envolvidos.

O Ministério Público instaurou um inquérito na sequência do ‘caso Marega’ e o parlamento aprovou as audições do ministro da Administração Interna, secretário do Estado do Desporto, Liga Portuguesa de Futebol e Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto.