“Obrigado por teres vindo”, dizem-nos os atores de semblante carregado, aquele que aparece quando alguém morre. São, afinal de contas, os anfitriões deste velório, que seguem à risca as ordens que a morta havia deixado cuidadosamente a seu cuidado. Raquel Castro morreu. Estamos em 2080, a atriz tinha 99 anos. No seu epitáfio quis que ficassem as seguintes palavras: “Esqueci-me de apanhar a roupa”. No fundo, A Morte de Raquel – novo espectáculo da atriz e encenadora – é um desejo há muito, por tanta gente, perseguido. Quem é que nunca quis estar vivo – ou pelo menos acordado, vá – no seu funeral?

É claro que isto continua a ser teatro e Raquel Castro está mais viva do que nunca. Em dezembro, estreou Turma de 95 no Teatro do Bairro Alto, mais um ensaio autobiográfico, a partir de um retrato da sua turma de 9º ano do Colégio Salesiano de Lisboa, em 1995. Agora, a partir desta quarta-feira, está no São Luiz em câmara ardente, onde ficará até dia 15 de Março.

A morte é algo que lhe aparece “pós-maternidade”, naquele “medo do que pode acontecer a um filho”. Mas já quando era enfermeira não era algo que a deixasse propriamente confortável. Sim, que Raquel Castro, antes de decidir ser atriz chegou a exercer enfermagem. Portanto, a arte aparece-lhe relativamente tarde na vida, lembra-se de ir ver um espectáculo e ficar com aquela sensação de curiosidade prolongada. Pois é, quando a curiosidade ganha pernas e dias e meses, pode bem deixar de o ser, isto é, de deixar de ser apenas isso. Estava quase a terminar o ensino secundário e decidiu inscrever-se num curso pós-laboral do Chapitô, ainda que isso não a tenha feito desistir de seguir enfermagem. Depois disso ainda esteve num grupo de teatro académico e, mais tarde, decidiu-se a ir para o Conservatório. Portanto, durante algo tempo, Raquel Castro foi atriz e enfermeira, mas o cansaço da acumulação das duas realidades ditou que o teatro saísse vencedor.

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Depois da vida, ou pelo menos de uma parte da vida da criadora, voltemos à morte, até para que se perceba que morrer – ou a perceção da morte – pode bem diferir de profissão para profissão, de cabeça para cabeça: “Desde setembro que ando embrulhada nestas duas peças. E foi doloroso contactar com estes materiais, foi uma coisa que mexeu comigo. Lembro-me de estar a jantar com umas amigas que estão distantes destas profissões artísticas e de lhes perguntar se elas pensam muito na morte. E elas: ‘ai não, estou tão ocupada’. E esta coisa da distração e da vida te distrair, quando tens uma vida prática e andas engolido por esta voracidade e sem tempo para pensar em nada… não é a mesma coisa que estares em frente a uma folha de papel branco a pensar nas merdas”, enquadra.

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No fundo, Raquel Castro faz este espectáculo para ver se lida melhor com a ideia da morte. Que o resultado pode ser mais um agravante do que uma melhoria, lá isso pode, mas esse é um risco que sempre se corre a cada espectáculo, seja ele sobre a morte ou sobre a roupa que ficou no estendal. E agora, Raquel, será que podemos finalmente saber como é que é morrer?

“Epá, acho que é escuro e frio. Se morresse aos 99 estava-se bem. O teatro também tem essa coisa de te obrigar a estar no presente, quando estás num palco não tens outra hipótese e como sou uma pessoa que sofre muito por antecipação é bom ter o teatro, agora estamos aqui a fazer isto e isto tem que ser feito. É bom, porque tenho uma cabeça muito assim, sempre a projetar, sempre a pensar nas 300 mil coisas que existem por resolver e por fazer”, explica.

Quem muito projeta, quem muita dificuldade tem em lidar com todos os foguetões e meteoritos que por aqui dentro vagueiam, pode bem resolver-se esquematicamente. Fazer uns tópicos, umas listas. Na Turma de 95 já havia algumas e em A Morte de Raquel também as há, sobretudo uma que enumera toda a pegada ecológica que a artista bem queria que fosse mais curta. Às listas juntam-se os elogios fúnebres que pediu a vários amigos que lhe escrevessem e aqui são lidas pelos atores/cicerones – Joana Bárcia, Nuno Nunes e Rita Morais – depois de bater com vigor numa pinhata há muito guardada na casa de Raquel, mais o seu testamento, mais as canções que quis que para si cantassem in memoriam.

Tempo ainda para uma descrição detalhada e espinhosa de uma série de gravidezes e abortos e períodos de repouso forçado intermináveis. Entramos, pois, no quintal da exposição, aquele em que o artista se destapa, onde a relva que pisamos parece mais viva. “Acho que essa exposição… para já, ninguém sabe o que é verdade ou que é mentira. E depois, acho que as leituras do Karl Ove Knausgard, não sei, andei um bocado obcecada com aquilo, a forma como ele corajosamente fala das coisas. Acho que fui influenciada por isso, pontos de partida autobiográficos, mistura entre realidade e ficção, e ‘bora lá ver no que é que isto dá’. Mesmo a foto que escolhi para o cartaz é uma exposição, e o que é que isso de estar exposta? Não sei bem, sei que estou à procura do meu sítio e acho que é um bocado este, por mais que doa”, afirma.

Este onde o teatro ou a arte servem para se deambular por temas que nem sempre vão a cena porque achamos que já os vivemos a toda a hora e portanto é mandá-los pela janela, ou deixá-los junto à tábua de engomar. Ora para Raquel Castro é o oposto, são esses que mais a agitam, o seu sítio é um sítio onde a banalidade pode ser mais do que banalidade:

“Tematicamente sempre me interessou o quotidiano, a família, a rotina, a maternidade, ando sempre à volta disso. Interessa-me esta banalidade da pessoa que tem uma vida normal, ser artista é um bocadinho diferente, mas em todas as outras coisas não é, tem coisas iguais às dos outros. Ser precário é banal, ser precário é ser artista e nesse sentido é do mais comum que há. Interessa-me esse brilho do dia-a-dia, o que pode ser especial nesse terreno”.

O seu primeiro espectáculo – Os Dias São Connosco – é um diário filmado para a sua primeira filha ver quando tiver 28 anos. Também se moveu pelo terreno da performance, com Mariana Tengner Barros, mais co-criações com Gonçalo Amorim, Pedro Gil, Miguel Castro Caldas. E ainda o entretenimento, a velocidade, as constantes notificações e ordens para irmos ao e-mail, ou ver a meteorologia, ou coisas várias. Era o Olhar de Milhões (Maria Matos, 2017): “Senti que aquela chama inicial que tinha quando comecei a criar era, nesse objeto, mais difícil de encontrar. Então quis dar um passo atrás e voltar a estes pontos de partida mais autobiográficos”, conta.

E que bem dado foi esse passo. Primeiro voltou à escola básica. Depois morreu. “Ando um bocadinho à procura da minha singularidade, de o que é que é a minha cena, e é engraçado como estas duas peças têm muitas coisas que emocionalmente mexem muito comigo”, admite. Raquel, estejas onde estiveres, o teu sítio é este.