Não explicou em que circunstâncias Carlos Santos Silva comprou o apartamento de José Sócrates ou as casas da sua mãe. Nem o dinheiro que o Ministério Público diz que dava ao ex-primeiro-ministro. Ou, sequer, as obras de arte. Durante duas horas, a advogada daquele que é visto como o testa de ferro de José Sócrates foi à raiz da investigação do processo, que envolve 28 arguidos, e tentou mostrar ao juiz Ivo Rosa como a prova usada “é manifestamente ilegal”. Entre ataques ao Ministério Público e à forma como investiga, deixou um recado ao juiz Carlos Alexandre e pediu ao juiz de instrução que não leve o caso a julgamento.
Foi assim que o debate instrutório do processo Marquês retomou a sua sexta sessão, esta segunda-feira, após três meses interrompida pela pandemia de Covid-19, por não ser um processo urgente. Uma alteração que, segundo disse Ivo Rosa logo no arranque da sessão, não muda em nada o processo. Mas houve mudanças nesta sessão: o juiz pediu às defesas para se fazerem representar apenas por um advogado, as entradas no tribunal passaram a ser feitas com desinfeção das mãos, sem troca de cartões de identificação e com distância de segurança assegurada.
Paula Lourenço abriu as alegações com agradecimentos a todos, incluindo ao procurador do processo Rosário Teixeira, também presente, que diz ser “indissociável da Operação Marquês”. Mas, dos agradecimentos, depressa escalou para as críticas, falando em meios de prova ocultos e em informações trocadas que não constam do processo e que violam a defesa de qualquer arguido.
“Vimos neste processo que há uma falta de transparência total que não é acessível nem sindicável”, disse.
À semelhança do que defendera no requerimento de abertura de instrução, a advogada lembrou que o processo nasceu de um procedimento administrativo (PA), uma espécie de pré-processo crime em que se percebe se há matéria para abrir um inquérito criminal ou não.
Uma figura que, segundo a advogada, é típica de uma ditadura e que houve em Portugal ainda antes do 25 de abril. Para corroborar a sua tese, Paula Lourenço socorreu-se várias vezes das conclusões de auditoria feita ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal que revelou, à data, haver 8500 processos administrativos abertos e que “não se sabia onde estavam cerca de 200, estavam arrumados em garagens e subcaves”. Oito deles, pelo menos, terão matéria sobre o seu cliente, Carlos Santos Silva, cujos movimentos foram seguidos ao longo de uma década.
Grande parte desses processos, assumiu, foram postos nas mãos da equipa do inspetor tributário Paulo Silva, em Braga. E mesmo quando foram abertos processos-crime, os PA continuaram a recolher informação, segundo afirma. Paula Lourenço, que ora ironizava, ora levantava a voz, foi-se socorrendo de cábulas e até de um livro sobre Sócrates para mostrar as provas que, segundo ela, foram obtidas ilegalmente e que culminaram na detenção do empresário amigo do ex-primeiro ministro.
Carlos Santos Silva era investigado há dez anos
Paula Lourenço lembrou que aprendeu, ainda nas aulas de direito, o que era a notícia do crime, já como estagiária nas secretarias do tribunal soube que a cada queixa era atribuído um NUIPC (um número que identifica o processo).
“É preciso chegar ao processo Marquês para saber que NUIPC tem uma nova designação: sítio onde a Direção das Finanças de Braga vai desovar processos administrativos”, ironizou.
Paula Lourenço diz que tanto Carlos Santos Silva como José Sócrates eram já investigados em processos administrativos que deram origem à operação Monte Branco. Que ambos foram escutados nesse processo e que só depois foi aberto o agora processo Marquês, em que continuaram a ser escutados. Só assim justifica que em julho de 2014 tenha havido suspeitas sobre o património de Carlos Santos Silva levantadas pelas Finanças de Braga, que tenha havido um relatório em setembro, escutas e que Sócrates tenha sido detido logo em novembro.
Por outro lado, ela própria foi à Suíça em janeiro de 2015 e percebeu que as informações bancárias já estavam nas mãos de um procurador suíço desde finais de 2013 e que algumas dessas informações tinham sido passadas a Rosário Teixeira.
Quando o afirmou, o procurador, no seu lugar, abanou a cabeça em jeito de reprovação. Paula Lourenço disse-lhe que estava tudo no processo Monte Branco, onde acabou por ir buscar elos de ligação entre provas e requerimentos e recursos do MP para poder afirmar que tudo é ilegal.
“É por isso que importante não haver processos como o Monte Branco e em que se façam várias chouriças”, disse-lhe.
E se tudo foi ilegal, segundo as suas alegações, foi também autorizado por um juiz de instrução criminal. Paula Lourenço nunca disse o seu nome (à data era Carlos Alexandre), mas usou uma expressão já usada por Rosário Teixeira para o descrever em todo o processo.
“É preciso que o juiz de instrução criminal não seja um estúpido útil” , a limitar-se a validar o que diz o Ministério Público. “Senão não é preciso um juiz”, disse.
Operação Marquês. Carlos Silva diz que investigação foi ilegal e critica o DCIAP
O “esquema manhoso” e a delação premiada proposta pelo Ministério Público
A advogada lembrou que o processo nasceu não com uma comunicação da Unidade de Informação Financeira, através da CGD — como diz o Ministério Público. Segundo a defesa de Carlos Santos Silva, tido como o testa de ferro de Sócrates, esta comunicação data de oito meses após Carlos Santos Silva comprar as casas de Sócrates e da sua mãe. “Como se estaria a fazer prevenção?”, interroga a advogada, lembrando que é esse o papel da UIF: a prevenção de branqueamento e de atividades que possam financiar o terrorismo. “Encontramos essa resposta no processo Monte Branco”, responde depois. “Só podemos dizer: não! Isso não é verdade! Quem fez esse input foi a investigação do processo Monte Branco”, explica, para provar que a investigação terá começado de forma ilegal.
Por outro lado, as próprias suspeitas contra Carlos Santos Silva sofreram do milagre da multiplicação, ironizou. As Finanças apuraram uma divergência no património e nos rendimentos do empresário amigo de Sócrates de 600 mil euros, mas a 14 de junho Paulo Silva diz que a divergência é de 23 milhões “e quando o Ministério Público faz a promoção para o juiz de instrução para obter os valores já estamos em 30 milhões” (em setembro), alega. “Aqui também se dá a multiplicação dos pães”, diz.
A advogada disse que o Ministério Público só conseguiu um elemento para a narrativa quando ouviu Hélder Bataglia, que vindo a Portugal de Angola para o nascimento da filha respondeu que “sim” a tudo, confirmando que os 15 milhões da Escom tinham passado para as contas de Santos Silva a pedido de Ricardo Salgado.
Interrogatório a Hélder Bataglia. “Não se dizia ‘não’ ao dr. Ricardo Salgado naquela altura”
Paula Lourenço acredita que estas declarações não foram mais do que uma “delação premiada”, que lhe valeu salvar-se na Operação Monte Branco num “esquema manhoso” que também teria sido proposto a Carlos Santos Silva.
A defensora do amigo de Sócrates também não percebeu porque é que as declarações que Bataglia fez em resposta à carta rogatória enviada para as autoridades angolanas não terá sido valorizada no processo. “O Ministério Público não gosta do sotaque angolano?”, interrogou, para depois imitar o sotaque, numa intervenção ainda mais irónica. “Prefere o francês?”, insistiu, falando em francês.
A advogada voltou a lembrar que o professor José António Morais falou com pessoas do círculo privado de Santos Silva antes de ele sequer saber que ia ser ouvido, em fevereiro de 2015, dizendo-lhe a data a que seria ouvido (o que se confirmou) e que teria que dizer que o dinheiro pertencia todo a Sócrates.
“Tem que existir um despacho de não pronúncia porque a prova do Ministério Público é manifestamente ilegal”, rematou
Diogo Gaspar Ferreira não conhecia co-arguidos
O mesmo pediu Paulo Saragoça da Matta, advogado de Diogo Gaspar Ferreira e da sua empresa, a Pepelan. O representante legal do resort de luxo Vale do Lobo foi acusado de corrupção ativa em coautoria com Bárbara Vara e Joaquim Barroca, quando nem os conhecia. Segundo o advogado, também quanto ao crime de branqueamento de capitais não pode o seu cliente ser levado a julgamento, até porque a ser punido “falta um arguido”, referindo-se a Van Dooren, o holandês que comprou um empreendimento em Vale do Lobo, e cuja forma de pagamento o Ministério Público considera suspeita.
“Não há nenhum crime de branqueamento que possa ser assacado a Diogo Gaspar Ferreira”, disse o advogado. “Não é possível haver crime como foi narrado pelo MP”, disse, lembrando que em todo o processo há “super juízes, super procuradores, super agentes de investigação, super agentes tributários” que deviam saber disso. “Não podemos ter acusações e pronúncias para encher tablóides”, disparou.
Quanto ao crime de fraude fiscal qualificada, o advogado disse que o cliente só foi acusado desse crime porque a fraude fiscal simples já tinha prescrito. Também ele deixou um recado ao juiz: “Ainda que haja apenas um a lutar por decisões jurídicas corretas, o que não pode é haver pessoas que por decisões jurídicas incorretas levem pessoas a julgamento”.
Na próxima quarta-feira será o advogado do primo de Sócrates, José Paulo Pinto de Sousa, a alegar, seguindo-se, para já, Vale do Lobo, Joaquim Barroca, Hélder Bataglia e Rui Horta e Costa. Seguem-se depois as alegações dos arguidos que não pediram a abertura de instrução: o motorista João Perna, a mulher de Carlos Santos Silva, Inês do Rosário, Ricardo Salgado, Luís Marques e José L. Santos e XMI. A defesa de José Sócrates ficará para o final, a seu pedido.
O processo envolve 28 arguidos, 19 dos quais empresas, envolvidos em crimes de corrupção, branqueamento e fraude.