— Está a demorar porque o ficheiro é muito grande? — perguntou a procuradora Marta Viegas.
— Está a abrir… Com alguns destes ficheiros é preciso é ter paciência — respondeu-lhe o inspetor da Polícia Judiciária (PJ) José Amador.
Não era para menos. É que a pasta que o inspetor tentava abrir tinha, contas redondas, mais de um milhão de documentos — documentos esses encontrados num dos discos rígidos de Rui Pinto. Mais dois minutos de uma silenciosa espera foram precisos para que a pasta abrisse finalmente. Paciência foi, de facto, a palavra de ordem desta quarta-feira no julgamento do Football Leaks.
Há três dias que José Amador está a ser ouvido. Naquela que foi a sexta sessão do julgamento, o inspetor esteve longas horas a explicar detalhadamente as características de cada um dos ataques de que Rui Pinto está acusado. E não só: o tipo de ficheiros que foram divulgados, onde e como foi feita essa divulgação e até a diferença entre uma VPN e um proxy — foi, aliás, a primeira pergunta do dia, feita pelo Ministério Público (MP), que fazia antever que a procuradora Marta Viegas procurava um depoimento mais técnico. Por vezes, o inspetor excedia as suas expectativas: “Isso já é muito técnico“, alertou a magistrada, a dada altura.
Mas inspetor revelou também que alguns dos ataques foram descobertos já quando a investigação ia a meio. Foi o caso do ataque à Procuradoria-Geral da República (PGR).
Ninguém na PGR fazia ideia do que se estaria a passar. Quando começámos a fazer a análise no contexto forense detetámos que a PGR aparecia muitas vezes e em diversas frentes, entre as quais o correio eletrónico”, contou ao tribunal.
Ao contrário do que aconteceu com a Doyen ou com o Sporting, que detetaram os ataques de que foram alvo e fizeram queixa à PJ, com a PGR essas intrusões passaram despercebidas. Só foi detetado quando os inspetores começaram a analisar os discos rígidos de Rui Pinto e lá começaram a “ver coisas” que face às temáticas e pessoas envolvidas não podia vir de mais lado nenhum”. Nomeadamente, ficheiros em segredo de justiça. Com o Sporting, aliás, o inspetor detalhou que o ataque que motivou a queixa só terminou depois de bloqueados o acesso de todos os endereços de IP da Hungria.
O SMS do banco que levou a PJ à casa de Rui Pinto na Hungria
O “maior ponto de compromisso” foi o ex-diretor do DCIAP, Amadeu Guerra, explicou o inspetor ao tribunal. Isto porque terá recebido um e-mail com um link vindo de um destinatário aparentemente credível que o levou não só a não suspeitar como a carregar nesse link. Ao fazê-lo, o magistrado estava sem saber a tornar-se num dos “pontos de entrada” do alegado hacker na PGR.
Também a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) só soube que tinha sido hackeada depois de a PJ ter analisado os discos apreendidos a Rui Pinto. “Em vez de ter sido a FPF a vir queixar-se, fomos nós que o fomos alertar”, disse o inspetor ao tribunal, detalhando que, neste caso, a investigação tinha um “papel inverso”:
No meio da análise, deparávamo-nos com coisas que careciam de diligências”.
Grande parte da sessão foi, no entanto, ocupada com a visualização, por parte do inspetor, dos ficheiros alegadamente roubados por Rui Pinto ou as publicações feitas nos blogues que terão servido para os tornar públicos. Essa visualização era feita ora em pens, ora em CD’s, ora em papel. Apesar da tentativa de simplificar as explicações, a dificuldade de o fazer era notória.
Não sei se algum de vocês tem um blogue”, disse a dada altura, motivando uma gargalhada coletiva na sala de audiências.
O julgamento continua já esta quinta-feira, com aquela que vai ser a quarta sessão do depoimento de José Amador. O inspetor vai continuar a responder às perguntas da procuradora Marta Viegas. Depois, terá ainda de esclarecer as questões dos advogados.
Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.
Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão. Isto porque, segundo a investigação, Rui Pinto terá exigido à Doyen um pagamento entre 500 mil e um milhão de euros para que não publicasse documentos relacionados com a sociedade que celebra contratos com clubes de futebol a nível mundial. Aníbal Pinto, então advogado do hacker, terá servido de seu intermediário. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.
O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juíza Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.