2020 tem sido um ano tão difícil, tão trágico, tão destrutivo que ansiamos diariamente por um raio de esperança, algo que nos faça acreditar no amanhã, que nos dê força para aguentar o hoje, uma boa notícia, seja ela qual for. E, quando já parecia impossível, ei-la: Adrianne Lenker está de coração partido, destruída por dentro, perdida no insondável percurso da sua vida. Ah, que inesperada alegria, que maravilha de notícia.
Calma. Ninguém aqui é psicopata, ninguém aqui tem défice de empatia humana para com os outros – deixamos isso para o presidente dos EUA. É apenas a (terrível) natureza da música pop, em particular quando esta tem um pendor confessional ou quando a força da música é proporcional à sua vulnerabilidade: um desastre na vida pessoal de um artista conduz, não raro, a que o artista produza uma joia que inevitavelmente os fãs adorarão.
Isto é mais claro que nunca em Songs, o mais recente disco de Adrianne Lenker, a incontestada líder dos Big Thief, que por sua vez são os incontestados líderes de um género razoavelmente difícil de classificar: podem ser tão gentis como a brisa de uma matina preguiçosa ou descarregar eletricidade, em particular ao vivo, como uma barragem mal disposta em dia de borrasca.
[“Two Reverse”:]
Musicalmente, os Big Thief devem tanto a Vashti Bunnyan, e outras divas da folk suave ou suavemente psicadélica, como aos Crazy Horse de Neil Young. É como se o campo que os Big Thief arassem englobasse toda a música americana passada – e o que dali brota é um enxerto de tudo o que ficou para trás no calendário, mas marcado pela intensidade particular de Adrianne Lenker.
Ao início, as canções dos Big Thief eram puro storytelling de trailer park, de white trash: histórias de famílias disruptivas e abusivas, de amores falhados ou adúlteros, de dependências; nos dois primeiros discos as canções desenhavam melodias lindíssimas, depois acumulavam tensão e explodiam; nos dois seguintes a escrita voltou-se para o interior e o rumo das canções tornou-se menos previsível – há algo de jazzy e psicadélico a eivar esses discos, como se cada tema andasse à procura de si mesmo por entre a tormenta do cosmos.
Não uso a palavra cosmos impunemente: em palco, em entrevistas, Adrianne usa e abusa de termos como energia, cosmos, karma – resquícios, talvez, de uma infância marcada pela religiosidade dos pais: inicialmente pertenciam a um estranho e obscuro culto marcado por um longo acervo de proibições (uma figura geométrica como a estrela era proibida, certos nomes eram proibidos). Os pais deixaram o culto, a família chegou a viver numa carrinha e Adrianne esteve a morrer quando foi atingida por um espigão dos caminhos-de-ferro, uma história narrada (do ponto de vista da mãe) em “Mythological Beauty”, canção incluída em Capacity, o segundo (e talvez mais imaculado) álbum dos Big Thief.
[“Ingydar”:]
Adrianne já contou estas histórias várias vezes, mas desta feita, numa entrevista recente à New Yorker, em que admitia que o impulso para este disco nascera da separação da sua ex-namorada, teve uma frase sintomática: “O percurso em que me encontro atualmente é o de tentar transmutar alguns destes padrões de violência”. A violência não se refere à relação com a ex-namorada, antes à infância. Há muito trauma por ali, a começar pela decisão do seu pai de a retirar desde cedo da escola de modo a formatá-la para ser uma espécie de Britney Spears.
No fim da adolescência Adrianne rebelou-se, recusou-se a editar as canções que havia feito para agradar ao pai, voltou ao liceu e teve a sorte ou o mérito (ou o karma) de conseguir uma bolsa para uma universidade, para estudar música. Mais tarde encontrou Buck Meek, com quem começou a tocar, até que dali nasceram os Big Thief – e um casamento entre os dois, acabado em divórcio (suficientemente funcional para a banda ainda funcionar).
Funcionar é escasso verbo para a qualidade e quantidade da produção musical de Adrianne: com os Big Thief, só desde 2016, ela editou Masterpiece (2016), Capacity (2017), U.F.O.F. (2019) e Two Hands (4AD, 2019); a solo, desde 2014, produziu outros quatro discos: Hours Were the Birds (2014), Abysskiss (2018) e, há escassos dias, Songs e Instrumentals (este um disco de instrumentais à guitarra, composto de dois temas em constantes crescendos).
[“Zombie Girl”:]
Trabalhar funciona para Lenker como catarse, em parte porque a sua forma de compor não equivale – segundo o que ela e quem a conhece diz – a trabalho: ela pega na guitarra e as canções descem por aqueles dedos, saem daquela garganta quase automaticamente. O facto de ser uma virtuosa com uma paixão pela simplicidade ajuda: ela não tem de empregar um esforço extraordinário para criar os intrincados dedilhados de guitarra acústica que marcam Songs; ela não tem de passar manhãs a fazer vocalizos para fazer subidas inesperadas nas suas melodias. É como se o seu imenso talento, e o esforço a que foi obrigada pelo pai em miúda fossem conjurados, hoje por ela, quase de imediato sempre que ela sente o ímpeto de escrever uma canção.
É como se ela não fosse autora daquelas notas de voz e guitarra, como se ela fosse apenas um veículo que a música usa para chegar a nós.
Só isso explica pequenos milagres como “Two Reverse” ou “Anything”, que escondem, por baixo da melodia triste e doce, dedilhados complexo. “Anything”, então, é das mais belas criações de Lenker, um tema falso lento, com pequenas frases que cortam, como “Don’t wanna fight / but your mother insist” e aquele refrão em que ela sobe de tom quase sem esforço e canta:
“I don’t wanna talk about anything
I wanna kiss kiss kiss you”
[“Anything”:]
Enumerar canções de Songs que são como milagres seria exaustivo: todo Songs é um admirável trabalho de filigrana e mesura, de alguém que sabe intuitivamente quando prolongar uma sílaba ou fazer uma bended note e sabe, intuitivamente, o impacto que isso tem no teatro que cada canção encerra. Lenker é um prodígio e uma virtuosa, mas não é em número de notas por segundo que ela negoceia – o seu mister é o da vulnerabilidade, de encontrar a exata conjugação de acordes maiores e menores, afinações e dedilhados, notas que sobem e descem na garganta e – pormenor importante – de palavras que funcionem como uma cortina que de repente se abrem, como uma cortina que nos mostra outro mundo: o da pequena devastação interior que cada um de nós comporta.
E para acreditar nisto nem sequer é preciso ir escutar uma canção específica, qualquer uma serve: ouve-se o strumming de “Come” e a dado momento damos por nós a ouvir “Come, help me die, my daughter” e como não sucumbir a isto? Clica-se em “Zombie”, uma canção folk de dor de corno, e por entre a tremenda beleza quase Dylaniana da canção, ouvimo-la cantar “Emptyness, tell me about your nature”, e pensem bem: alguma vez encontraram uma melhor definição do que se segue a uma valente traulitada no coração?
Na música popular ainda estamos muito presos àquela figura do músico enquanto xamã que cria sem esforço, como se tivesse acesso a um portal para o génio, do músico enquanto sofredor que purga os seus demónios compasso a compasso. Muito raramente é este o caso – a música é o produto de muito esforço e de decisões conscientes.
Exceto com Adrianne. Ela não quer decidir nada, apenas expurga a doença da infância pelos dedos e pela garganta. Adrianne é o mito romântico vivo, que sofre para nos contar de como sobreviveu – se pudesse, levava-a para casa, deitava-a no sofá, cobria-a com uma manta, dava-lhe chocolate quente e mentia-lhe, dizendo que vai tudo ficar bem.
Como não posso, tento que mais e mais gente ouça a sua subtil e louca beleza.