(Em atualização)

Morreu o escultor João Cutileiro, de 83 anos. A notícia é avançada pela TSF, a TVI24 e o Público, que afirmam ter confirmado a notícia junto de familiares do artista. A causa da morte terá sido complicações causadas por um enfisema pulmonar. Cutileiro estava internado no Hospital Pulido Valente, em Lisboa.

Entre as inúmeras obras que criou o longo de 60 anos de carreira destacam-se algumas mais polémicas como o Monumento ao 25 de Abril, instalado no Parque Eduardo VII, Lisboa, e o célebre D.Sebastião que apresentou em Lagos, em 1970, em claro desafio aos canons conservadores do Estado Novo. A escultura em mármore de corrente figurativa foi uma das suas imagens de marca.

Pelo seu atelier passaram grandes nomes como José Pedro Croft, Manuel Rosa, António Campos Rosado e Sérgio Taborda. É precisamente Croft que recorda à Rádio Observador aquilo que descreve como uma amizade “muito intensa” que “durou mais de 40 anos”. “Ele incendiou o mundo, incendiava a arte. Defendia que os artistas deviam ser independentes e autónomos. Deviam trabalhar em liberdade. Era um homem de grande consciência política e talento”, afirma ainda.

José Guimarães: “O João era um dos grandes escultores portugueses”

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Entretanto o primeiro-ministro António Costa acaba de utilizar a sua conta oficial no Twitter para destacar o artista cujo trabalho levou a escultura à contemporaneidade. “As suas obras públicas contribuíram para renovar o espaço público em Portugal e dessacralizar a estatuária”,  escreve Costa.

José de Guimarães, por sua vez, não hesita ao afirmar que a morte de João Cutileiro representa “mais uma perda irreparável para a cultura portuguesa”. O também prestigiado artista plástico admite que “foi realmente uma surpresa” saber do desaparecimento do “João” que era “realmente um dos grandes escultores portugueses”. “Éramos amigos. Trabalhámos mais ou menos juntos com uma galeria no Algarve, o Centro Cultural de São Lourenço. Tínhamos uma relação profissional muito cordial.”

“Tive o privilégio de com ele privar em certa época, num ambiente de amizade. Nas últimas décadas viveu em Évora, onde apadrinhou muitos artistas mais jovens e expôs a sua vasta obra, tendo doado o seu espólio à Direção Regional de Cultura do Alentejo, à Universidade de Évora e à Câmara Municipal”, assinala ainda o Presidente da República.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lamentou também a morte do escultor. “João Cutileiro nunca foi indiferente, nem nunca nos deixou indiferente”, escreve Marcelo Rebelo de Sousa, numa nota publicada no portal da Presidência da República na Internet, em que lamenta a sua morte e envia “sentidas condolências” à família do escultor.

Na nota divulgada pelo Presidente da República, refere-se que João Cutileiro nasceu “numa família culta, com forte ligação ao Alentejo, irmão do futuro diplomata e escritor José Cutileiro”, e que “viveu em Lisboa, onde conheceu bem o meio literário e artístico”.

“O surrealismo interessou-o, a política tentou-o, as viagens ao estrangeiro abriram-lhe horizontes. Descoberta a vocação artística, estudou na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e de seguida, escapando ao academismo, em Londres, na Slade School of Arts. Começou a expor na década de 1960”, acrescenta-se.

Segundo Marcelo Rebelo de Sousa, “o seu trabalho como escultor, mas também como fotógrafo, é marcado pelas revisitações do imaginário nacional e por um franco erotismo”.

O chefe de Estado destaca “as figuras históricas destinadas ao espaço público, nomeadamente o ‘Dom Sebastião de Lagos’ (1973), mas também o monumento ao 25 de Abril, no alto do parque Eduardo VII, em Lisboa”, obras que no seu entender “assumiram uma vontade de revisitação terra-a-terra, mordaz, da História e das mitologias nacionais”.

A candidata a Presidência da República pelo Bloco de Esquerda, Marisa Matias, foi uma das primeiras a fazê-lo, destacando João Cutileiro como um “grande homem” e “anti-fascista”.

A Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Isabel Mota, disse à Rádio Observador que guarda memórias de “muita gargalhada,  muita brincadeira” da sua convivência com o escultor. “Gostava muito de dizer coisas que às vezes deixava-nos sem perceber o que ele queria dizer”, recorda.

Já Carlos Pinto Sá, Presidente da Câmara Municipal de Évora — região alentejana onde o escultor muito trabalhou –, não hesitou em classificar a morte de João Cutileiro como “uma perda irreparável para o país e para o Alentejo.” O autarca destacou ainda o “trabalho absolutamente impressionante de rutura e polémica” que Cutileiro sempre desenvolveu na sua área.

Exposição com espólio de João Cutileiro será em em, em Vila Nova de Foz Coa

Em declarações à Rádio Observador, a Ministra da Cultura afirma que “hoje é mais um dia triste para a cultura portuguesa Portuguesa: João Cutileiro deixou-nos.” Graça Fonseca destacou o “extraordinário escultor da vida” que tem o seu trabalho “presente em quase todo o país, tanto no espaço público como em coleções privadas”. Falado em direto, via telefone, destacou que João Cutileiro era alguém “muito especial na sua arte e na sua vida” que em 2018 decidiu doar todo o seu espólio ao Estado: “Tive o privilégio de assinar esse ato de doação com o próprio João Cutileiro, em 2018. Foi uma decisão dele. São mais de 900 que podem entrar no domínio publico para que possam ser estudadas, investigadas e divulgadas”, explicou a ministra.

Parte desse espólio será exibido já em maio, “numa exposição em Vila Nova de Foz Coa”, e há planos deixados pelo próprio escultor para que a sua casa e atelier fossem transformados “num museu vivo que permitisse às novas gerações conhecer melhor a sua obra, a forma como trabalhava e esculpia o mármore”, isto para que “novas gerações possam encontrar ali alguma inspiração e formação.”

O presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, considerou que João Cutileiro foi um dos nomes maiores da escultura portuguesa e que, com a sua morte, Portugal perdeu uma das suas grandes referências artísticas. “Portugal perdeu hoje uma das suas grandes referências artísticas”, afirmou o presidente da Assembleia da República, numa mensagem enviada à agência Lusa.

João Cutileiro: o desafiador que deve a Escultura a um canteiro

Para Ferro Rodrigues, João Cutileiro “foi um dos nomes maiores da escultura portuguesa, sucedendo, na dimensão da sua obra, ao mestre Leopoldo de Almeida – de quem foi aluno, nos anos 50 do século passado, depois de ter colaborado com Jorge Barradas e António Duarte”. Ferro Rodrigues destaca depois uma geração de artistas que, com João Cutileiro e através da escultura, “ajudou a revisitar a identidade portuguesa”.

“Afirmava que o desenho era a origem de tudo, e depois de deixar a sua marca na paisagem portuguesa – merecendo destaque, pela rutura que constituíram, as obras instaladas no centro de Lagos, no Parque Eduardo VII, em Lisboa, mas, igualmente, no Palácio de Mateus, em Vila Real, ou na Assembleia da República, onde se encontra o busto de Natália Correia, de 1999 -, era pelo desenho que se vinha expressando nos últimos anos, na mesma linha figurativa que o caracterizava”, acrescenta o presidente da Assembleia da República.

O “Lago das Tágides”, obra que Cutileiro fez para a Expo 98 e ainda hoje vive no agora chamado Parque das Nações.

Nascido em Lisboa, em 1937, Cutileiro entrou em contacto com o mundo da arte pela primeira vez graças a António Pedro, membro do Grupo Surrealista de Lisboa, amigo do seu pai, que o pôs a trabalhar no seu atelier. Desde cedo  Uma visita a Florença durante a década de 1950 fá-lo descobrir a escultura de Miguel Ângelo e isso terá sido a motivação necessária para o fazer querer ingressar na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, de onde sairia dois anos depois rumo a Londres, à Slade School of Arts.

O Monumento ao 25 de Abril do Parque Eduardo VII, em Lisboa, é um das obras mais conhecidas de Cutileiro.

Em 1961 tem a sua primeira grande oportunidade de dar a conhecer o seu trabalho em Portugal graças à participação na II Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, onde tem a companhia de outro nome grande da cultura portuguesa, a pintora Paula Rego. Regressa a Portugal em 1970 e é por cá que vai consolidado a sua carreira como um dos nomes cimeiros da história da escultura portuguesa. “A sexualidade e as fomes são as forças que me moldaram e que certamente se refletem em todo o traço que faça”, diz o próprio num vídeo da Fundação Gulbenkian quando questionado sobre as suas influências e inspirações.

Foi responsável por dar nova avida a personagens históricas e artistas da história nacional ao recriar, à sua imagem contemporânea, figuras como D. Afonso Henriques, Luís de Camões, e D. Sancho I. Fez exposições obre temáticas tão diferentes como o o retrato, o nu e as flores. Somou distinções e prémios sendo alguns dos mais relevantes o doutoramentos honoris causa pelas universidades de Évora (2013) e Nova de Lisboa (2017), depois de em 1983 ter sido agraciado com o grau de Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada.