Quem quiser ter bons argumentos contra o parto em casa, basta-lhe ir ver “Pieces of a Woman”, o primeiro filme em língua inglesa do húngaro Kórnel Mundruczó ( “Deus Branco”, “A Lua de Júpiter”), disponível na Netflix. A abertura da fita, com quase meia hora de duração e filmada num elaborado plano-sequência por uma câmara que parece mais leve que o ar, mostra o traumático parto caseiro de Martha Weiss (Vanessa Kirby, de “The Crown”), culminando com a morte do bebé por asfixia, perante o desespero e a impotência do pai, Sean (Shia LaBoeuf) e da parteira (Molly Parker) que veio substituir, à última hora, a que tinha sido contratada pelo casal.

[Veja o “trailer” de “Pieces of a Woman”:]

É um momento de cinema formalmente tão impressionante como aflitivo ao ponto do insuportável, onde a pancada emocional e o envolvimento do espectador são conseguidos não à custa de pormenores explícitos, mas sim através das interpretações, sobretudo a de Vanessa Kirby, premiada Melhor Atriz no Festival de Veneza. Ela faz passar, primeiro, todo o sofrimento físico de Martha, e depois a sua dor mais crua pela morte da criança, após um breve momento de alegria em que tudo parecia estar bem. Mas tudo o que vem a seguir está nos antípodas desta sequência inicial, porque o filme é o oposto de um melodrama dilacerante e sonoramente exteriorizado. Após a abertura de choque, Mundruczó mete o silenciador de emoções e não o tira até ao fim.

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A interpretação de Vanessa Kirby é o diapasão dramático de “Pieces of a Woman”. A  composta Martha cala a dor e atira para muito fundo o seu luto, ao ponto de podermos pensar que ficou emocionalmente sedada pelo sucedido. Ao contrário de Sean, um cabeça quente com historial de dependências, que quebra e sofre em desespero, e recrimina a mulher por não fazer o mesmo, como se ela fosse culpada de não reagir como ele e os outros. Sean, e a metediça e recriminadora mãe de Martha (ótima Ellen Burstyn), com a relutância dela, levam o caso à justiça para fazerem a parteira pagar, apesar da jovem não estar interessada em indemnizações ou vingança, e acabe até por negar ao filme o lugar-comum do clímax catártico em tribunal.

[Veja uma entrevista com o realizador, a argumentista, Vanessa Kirby e Ellen Burstyn:]

Embora se passe nos EUA, em Boston (na realidade, a rodagem decorreu no Canadá e na Noruega), “Pieces of a Woman”, escrito por Kata Wéber, colaboradora de  Kórnel Mundruczó desde “O Deus Branco”, denota uma sensibilidade, uma identidade e um gesto formal quem pertencem mais ao cinema europeu de Leste do que ao americano. É um filme onde as águas da tragédia fluem sempre subterraneamente e quase sem se fazerem ouvir, ao invés de jorrarem aberta, em desgoverno e ruidosamente para a superfície, e praticamente tudo o que respeita ao estado interior das personagens e às relações entre elas é transmitido pelo realizador de forma simbólica, indireta, alusiva ou sintética.

Numa loja de roupa, Martha está a olhar para uma menina, quando nota que esta também olha para ela, mas por ter reparado na mancha de leite de um dos seios na blusa; a antipatia que a mãe de Martha, uma abastada viúva, sempre teve por Sean, que trabalha na construção civil, manifesta-se quando ela lhe entrega de súbito um gordo cheque para que saia da vida da filha, e da família; Martha descobre a infidelidade de Sean através de umas fotos esquecidas numa loja de fotografia; quando Sean explica como um fenómeno chamado ressonância pode destruir uma sólida ponte, fala também do que está a acontecer ao seu casamento; e as plantas que morrem na cozinha por não terem sido regadas, e a louça suja que se acumula no lava-louça, são um correlativo para o colapso da relação do casal.

[Veja uma cena do filme:]

É tudo tão reservado, tão figurado e metafórico em “Pieces of a Woman”, que a certa altura dá vontade que alguém desate aos berros descompassados de sofrimento, ou então se ponha a partir coisas em desespero ou para descarregar. E em vez de concluir o filme com o singelo e comoventíssimo plano de Martha sozinha na ponte, a deitar as cinzas da filha para o rio, Kórnel Mundruczó fá-lo com uma enigmática e primaveril sequência em que uma menina sobe a uma frondosa árvore num jardim, e a mãe a vem chamar logo a seguir para almoçar. É um sonho de Martha? Um vislumbre de um futuro alternativo em que a criança sobreviveu? Não é claro e fica ali a boiar, um ponto de interrogação desnecessário num filme por vezes demasiado rarefeito, quando se desejava mais visceral.

“Pieces of a Woman” estreia-se esta quinta-feira, dia sete, na Netflix