O Forte da Trafaria, uma antiga prisão militar abandonada há mais de 40 anos, deverá acolher a partir do próximo ano um novo espaço de ensino, investigação e criação artística ligada à tecnologia, sob responsabilidade da Universidade Nova de Lisboa. O Instituto de Arte e Tecnologia (IAT) “não será uma nova faculdade”, antes uma “plataforma colaborativa” para projetos que hoje funcionam de maneira dispersa e sem local próprio, disse ao Observador João Sàágua, reitor da Nova. Os coordenadores académicos do IAT serão os professores João Mário Grilo e Nuno Correia.

“Vamos fazer uma requalificação e adaptação por fases do Forte da Trafaria e a nossa expectativa é de que em 2022 uma parte do IAT esteja a funcionar. Gostaríamos que em 2023 já estivesse a funcionar em pleno”, adiantou o mesmo responsável, reitor da Nova desde junho de 2017.

O concurso para a empreitada deve ser lançado até ao fim de março e as obras podem começar no fim deste ano, segundo o reitor. O investimento total, com recuperação do Forte e instalação de equipamento tecnológico e outro, vai rondar sete milhões de euros, com 40% do montante a ter origem em fundos estruturais da União Europeia.

Para concretizar o IAT, a Nova assinou na semana passada um protocolo com a Câmara de Almada, proprietária do Forte da Trafaria. O município tinha aprovado em reunião de câmara de 7 de setembro a cedência à Nova da quase totalidade da área do Forte por um período mínimo de 50 anos. No protocolo, o IAT surge descrito como “uma unidade académica da Universidade Nova, dedicada à educação, formação, investigação e criação nas áreas de confluência das artes e das tecnologias, umas e outras abordadas na sua máxima amplitude conceptual e de expressão”.

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[vídeo criado pela Nova para divulgação do projeto:]

“Ensino superior como uma torre de marfim acabou”

O projeto implica a colaboração entre as duas maiores faculdades da Nova: a Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT), situada no Monte da Caparica, também em Almada, e a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), na Avenida de Berna, em Lisboa.

“A componente tecnológica é cada vez mais importante em todas as artes e áreas criativas, mas uma instituição com estas características ainda é uma raridade, há pouca oferta mesmo a nível europeu”, referiu ao Observador a presidente da Câmara de Almada, Inês de Medeiros, que considera serem “inúmeros os benefícios” do IAT. “Desde logo, para a Trafaria, uma das zonas mais bonitas do concelho de Almada, que era uma freguesia um pouco envelhecida e que já está com um movimento importante de renovação. O IAT é um grande projeto-âncora que traz outra vivacidade à zona e permite a interatividade com Lisboa e Oeiras. Estaremos também a estreitar as relações entre o município e a FCT, a levá-la para lá do Monte da Caparica, isso é muito importante.”

Ao nível da formação, de acordo com o site da Nova, o novo instituto contribuirá com disciplinas e créditos para os mestrados e doutoramentos já existentes na FCT e na FCSH. Vai oferecer “cursos de curta duração” sobre temas como práticas artísticas contemporâneas, fotografia, animação digital e 3D, arte e liderança criativa e realização e cinematografia. Na área da investigação, organiza-se em torno de sete laboratórios: cinema e artes visuais, artes digitais, moda e design, performance e artes do espetáculo, artes sonoras e musicais, património e estudos urbanos, estudos críticos.

A “prestação de serviços à comunidade envolvente e à sociedade em geral” é outra das apostas, estando prevista a organização de festivais, exposições, conferências e ciclos temáticos. Além de estudantes portugueses e de outros países, o IAT pretende atrair jovens investigadores que queiram apresentar projetos a desenvolver dentro da instituição.

“A FCT tem uma componente de tecnologia muito relevante para as artes e cultura, nomeadamente na área do digital e da conservação e restauro. Já a FCSH, tem em muitos dos seus departamentos e centros de investigação uma componente de artes, desde logo na comunicação, na história da arte e na filosofia. Estas duas faculdades têm um histórico de projetos conjuntos, incluindo um doutoramento em média digitais, que também tem uma ligação à Universidade Austin, no Texas. Foi assim que nasceu a ideia de criar o IAT”, explicou o reitor da Nova. “Os projetos atuais que unem a FCT e a FCSH, tal como funcionam, estão espartilhados. A colaboração com as empresas, com o setor público e com os agentes culturais em geral está relativamente limitada. Não temos um ecossistema suficientemente interessante para permitir desenvolver as máximas potencialidades conjuntas. É isso que vamos ter na Trafaria, é um sítio privilegiado”, acrescentou.

A título de exemplo, João Sàágua referiu que um estudante de doutoramento em estudos artísticos pode “estacionar” durante um ano e meio o seu projeto de tese no IAT e ter a oportunidade, que na faculdade de origem não teria, de “interagir com a comunidade local ou com empresas e entidades do setor público” que adiram ao IAT.

“A visão do ensino superior como uma torre de marfim acabou, já não existe”, afirmou. “Os alunos recebiam um diploma e saíam. Não há nenhuma universidade que esteja na linha da frente a pensar desta maneira. A Nova, em particular, tem um compromisso com a sociedade em sentido lato e, no caso do IAT, um compromisso com a comunidade da Trafaria. O nosso objetivo é o de deitar as paredes abaixo, ter instituições abertas, em que a sociedade pode entrar, partilhar projetos e iniciativas, sem esquecer a investigação pura, que continua a ter toda a relevância.”

Inês de Medeiros, presidente da Câmara de Almada, e João Sàágua, reitor da Universidade Nova, assinaram na semana passada o acordo de cedência do Forte da Trafaria

Núcleo do Forte da Trafaria vai evocar presos políticos

Até à inauguração do IAT, as sinergias entre a FCT e a FCSH no que às artes e à tecnologia diz respeito passam também por Almada, através do projeto T-Factor, com financiamento europeu e colaboração de outras autarquias e instituições europeias de ensino superior. “São aproximações sucessivas para chegarmos ao ecossistema propriamente dito”, sublinhou João Sàágua. Inês de Medeiros apontou que isso pode acontecer num conjunto de edifícios adjacentes ao Forte da Trafaria que já hoje estão reabilitados ou em processo adiantado de reabilitação.

O Forte da Trafaria, ou Forte de Nossa Senhora da Saúde, fica a poucos metros da estação fluvial da Trafaria. É um edifício militar construído no século XVI como lazareto (espaço de quarentena para pessoas com lepra), depois adaptado a prisão e mais tarde convertido em fábrica de fertilizantes. Entre 1910 e 1981 tornou a ser um estabelecimento prisional da Marinha e do Exército.

Encontrava-se devoluto quando há duas décadas foi adquirido pela Câmara de Almada. “Desde há vários anos, o Forte da Trafaria não regista qualquer tipo de ocupação permanente ou sequer regular, nem beneficia de ações de manutenção ou conservação relevantes, o que tem contribuído para o acelerar da sua degradação, agravada por uma localização ribeirinha e marítima penalizadora de imóveis que não beneficiem de intervenções regulares”, lê-se no protocolo de cedência assinado há dias entre a Câmara e a Nova.

Para o reitor e para a presidente da Câmara de Almada a criação do IAT permite concretizar compromissos que ambos assumiram quando se candidataram aos respetivos cargos. No caso de João Sàágua, um dos desideratos era a existência de “plataformas multidisciplinares” no seio da Nova, “porque hoje os grandes desafios ao conhecimento e ao desenvolvimento sustentável da sociedade não se resolvem dentro de uma só disciplina, convocam várias disciplinas ao mesmo tempo”. Quanto a Inês de Medeiros, tinha apresentado em 2017 a promessa eleitoral de reabilitar o Forte da Trafaria — que chegou a ser pensado para escola de hotelaria.

A presidente da Câmara de Almada fez notar que o antigo presídio contém um “núcleo emblemático” conhecido como Edifício das Celas, que corresponde precisamente a antigas celas penitenciárias “onde chegaram a estar resistentes antifascistas” durante o Estado Novo. Esse núcleo permanecerá a cargo do município e será reabilitado para transformação em “espaço expositivo e de memória”, mas com programação relacionada com o futuro IAT.