Titulo: Instinto
Autora: Ashley Audrain
Editora: Suma de Letras
Páginas: 338
Preço: 18,80€

Publicado em simultâneo em 30 países, Instinto, de Ashley Audrain, chegou a Portugal pela mão da Suma de Letras. Desconcertante, assim que começa, destrói. Como uma bola de demolição que faz explodir paredes, intui-se desde o início que ao leitor não restará neurónio em cima de neurónio.

Na narrativa, há uma família que se forma e auto-destrói. A premissa de que parte é a de uma expectativa não cumprida: será obrigatório amar-se os filhos? Partindo-se deste desconcerto, não há respostas claras, apesar de haver só uma versão.

Audrain começou a escrever o livro durante a gravidez e a estadia no hospital junto ao seu filho recém-nascido, que esteve às portas da morte. O cerne do romance não é pastiche da sua vida, mas o livro desmistifica a idealização – a romantização – da maternidade. O âmago que explora é denso e negro. Todas as dúvidas são doridas, as certezas são desconfortáveis.

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Partindo da idealização da maternidade (“Todos nós esperamos ter, casar com, ser boas mães”, p. 17), do que se espera de uma mãe, da única hipótese de mãe possível – a amante incondicional, a apaixonada pelos filhos, a auto-relegada para segundo ou terceiro plano em prol deles –, a autora, em entrevistas, já salientou que, quando se põe um filho no mundo, não se sabe quem está lá. Não se sabe quem vai ser. E, portanto, abordar a quebra da expectativa do amor maternal incondicional – que é global – passa por trazer, literalmente preto no branco, um tabu escancarado para a literatura. E será esse o papel desta arte: enfrentar os cornos da vida, pegar neles, escarafunchar o desconforto, permitir que o desconforto se alastre, não ter medo de encarar ou apanhar traumas, ir ao âmago mais profundo da psicologia humana, pôr os pés noutros sapatos. A literatura, assim, permite-se imiscuir-se em terreno proibido pela vida. Enfrentar tabus é isso mesmo e esse é o seu grande triunfo: entrar em lugares secretos, expo-los, dá-los, ser outras cabeças, ampliar as cabeças dos leitores ao dar-lhes mais mundo de bandeja.

A capa da edição portuguesa de “Instinto” (“The Push”, no original; Suma de Letras)

Assim, Ashley Audrain põe-nos dentro de uma cabeça (Blythe) que não quis ter aquela filha (Violet). Ao fim de algum tempo, admite-o para si própria, já que a aversão é por demais evidente, tornando-se claro o asco que a presença da filha provoca, assim como o seu próprio desconforto, que também se torna em asco, por ser mãe dela. Incapaz de se desfazer dessa carga – a responsabilidade do nascimento de Violet é sua, a da sua sobrevivência também –, não entende no início se é ela que não está talhada para ser mãe, se é a miúda que não merece amor.

Contra a ficcionalização do eu, assume-se alguém em bruto e que um dado adquirido é uma falácia – e até, ao longo da narrativa, que se põe em causa quem não aceita esse dado adquirido. A ideia da ficcionalização do eu passa aqui pela imagem que é suposto uma mãe dar e pela forma como alguém se mede pela sua capacidade maternal e não se aceita que não se possa tê-la de forma inata. Entende-se, já que à maternidade está associada a necessidade biológica de cuidar. Assim, a imagem exterior deve ser a da paz, a da melhor profissão do mundo, a do amor incondicional, a do mundo cor-de-rosa da imagem fabricada em que se mostra o que é bom, fácil, invejável. No romance, subjacente à pressão de dar a imagem certa, estão mil dúvidas que deixam a narradora em xeque, que a fazem duvidar de si. E, ao expo-las, fazem com que os outros também duvidem dela. Mas até que ponto se pode filtrar, simular, fingir? Há uma hora em que Blythe tem de perceber a origem do problema. Será ela interiormente incapaz de amar a filha, de ser mãe para além de genitora?

Em cima da mesa do romance, está o tabu: uma mãe pode arrepender-se de ter um filho. E pode alimentá-lo numa simbiose natural, ser o seu laço mais estreito à sobrevivência (e, antes disso, à sua formação biológica), e não ter nada para lhe dar do ponto de vista emocional. Pode olhar para um humano criado e ver só o que lá está, sem a magia da primeira vez, com o pragmatismo da existência.

Em simultâneo, pode ver o que lhe tira, e contra a idealização da maternidade aparece a realidade em bruto: as noites sem dormir, o sangue expelido do corpo, os mamilos gretados, a exigência de um bebé que chora e exige atenção absoluta, submissão absoluta. E, perante o que parece ser o mundo cor-de-rosa alheio, sem exceções, sente o abismo das suas dificuldades, que parecem atestar uma incapacidade, uma incompetência:

“Tinha a sensação de ser a única mãe no mundo incapaz de sobreviver. A única mãe que não conseguia ultrapassar a circunstância de ter o períneo suturado do ânus à vagina. A única mãe que não conseguia resistir à dor das gengivas de uma recém-nascida a cortarem-lhe os mamilos como lâminas. A única mãe que não conseguia fingir ser capaz de pôr o cérebro a trabalhar quando a insónia apertava. A única mãe que olhava para a filha e pensava: Desaparece-me daqui.” (p. 50)

No início, tudo parece encaminhado, não há nenhum tabu em debate. Blythe quer ser o estereótipo de mãe que não teve, quer ser veículo de amor incondicional. Quer, enfim, ser mais uma a cumprir a expectativa. E, logo no início, não só pensa no motivo pelo qual a filha, Violet, não lhe parece a melhor coisa que lhe acontece como ainda lhe parece que é ela que a impede de ser a mãe total, ao rejeitar-lhe o afeto. O problema, na sua forma de interpretar essa relação, é que mais ninguém a vê a rejeitá-la, e mais ninguém vê as violências e as maldades de que a acusa. No que parecem ser coisas próprias da idade numa criança, Blythe vê intenções e crueldade.

Tenta, ainda assim, cumprir o seu papel de mãe, mas, ao achar que a miúda rejeita o seu afeto, impede-se de lho dar. Volvidas algumas dezenas de páginas, não se percebe onde tudo começou, se o que diz da filha é uma interpretação sem propósito, se Blythe é a única a ver o impossível. É que ela olha para a miúda e intui que é nela que algo não está bem. A miúda, por seu lado, também sentirá que não leva da mãe a incondicionalidade maternal. Há um laço ali que não se forma. De quem é a culpa?

Ao mesmo tempo, a distância entre mãe e pai – esposa e marido – transforma-se num abismo. E Blythe ganha ressentimento à filha: “Quanto mais a Violet recebia de ti, menos me davas.” (p. 65). O marido, por sua vez, também se ressente ao sentir que a filha não é importante para a mãe. Aos poucos, perdem-se um do outro:

“Mas havia omissões subtis. Deixámos de fazer palavras cruzadas juntos. Já não deixavas a porta da casa de banho aberta quando tomavas banho. Passou a haver espaço onde dantes não havia, e esse espaço era ocupado por ressentimento.” (p. 65); “Querias que eu descansasse, para poder cumprir os meus deveres. Dantes, preocupavas-te comigo enquanto pessoa – com a minha felicidade, com as coisas que me permitiam florescer. Agora, era uma prestadora de serviços. Não me encaravas como mulher. Era apenas a mãe da tua filha.” (p. 67); “Atiraste-me uma toalha, com se estivéssemos a partilhar um balneário – costumavas secar-me o corpo devagar, costumava ser uma rotina nossa.” (p. 79).

Enquanto se perde a relação conjugal, não se ganha uma relação maternal. O abismo entre mãe e filha é evidente, as birras que a criança faz são vistas como vergonha: “Sentia-me humilhada – tinham pena de mim ou por ter dado à luz uma criança como a Violet ou por aparentar ser uma mãe demasiado fraca para conseguir aturá-la.” (p. 89). O desprezo e a descarada ausência de amor estão evidentes, e não se entende logo se Violet é uma criança difícil, se Blythe vê dificuldades na sua criancice. Mas o seu olhar destoa, algo ali não bate certo, mais ninguém vê o que não é suposto ver-se. Em todos os pequenos gestos, a mãe vê intenções da filha. Para o leitor, nada é claro: existirão mesmo?

O marido diz que ela imagina coisas e condena-a por ser capaz de julgá-las. É que, se ele fala da “rabugice própria de uma criança de colo” (p. 89), ela acha que o problema é não haver “a meiguice e o afeto próprio de outras crianças da sua idade” (p. 89). Blythe vinga-se como pode do desprezo que a filha lhe provoca, deixa-a chorar quando ela ainda não tem idade para contar, castiga-a pela sua presença. Enquanto trabalha, põe os auriculares e finge que a filha não existe. Violet, ao ter a mãe por perto de novo, reage esperneando e dando chapadas, e então já Blythe procura na Internet sinais precoces de distúrbios comportamentais ao mesmo tempo que não tem “vontade de ser mãe de uma criança dessas” (p. 90).

Ao pôr a filha em causa, o diagnóstico é claro: Blythe é uma má mãe. Durante o livro, questionamo-nos acerca da sanidade mental da narradora. Ainda por cima, com o nascimento do segundo filho, Sam, a mãe disciplicente é, afinal, mãe. Ama o filho, como expectável, mas odeia a filha em simultâneo. Com esta distância entre um e outro, teme que a segunda ponha o primeiro em causa – em perigo.

E a relação entre irmãos vai acontecendo ao mesmo tempo que a mãe vê intenções que talvez não estejam lá – e que vê ações, gestos, mãos, que talvez não estejam lá. Não se sabe. Não se apercebe se o que relata é o que acontece, se é reflexo do ódio à filha. Não se percebe se o livro é uma versão que justifique a falta de amor, que a isente da obrigação moral e humana de amar a sua criança. Não se percebe se apresenta a miúda como incapaz de ter empatia para justificar a sua falta de empatia. Se a filha for natural, intimamente, má pessoa, talvez não seja ela que é má mãe. E, quando a acusa e o marido a acusa de acusá-la, a sentença é clara: “O problema não sou eu.” (p. 111). Mas, claro, ninguém quer ouvir a possibilidade (e será que existe?) de o problema ser uma criança.

Estando na cabeça de Blythe, vendo o mundo através dela, o leitor consegue, ainda assim, vê-la de fora. Põe-na em causa, chega a conculsões diferentes. Percebe que o que vê não é o que lá está. E depois duvida, julga que afinal só viu o que ali estava.

Com Instinto, o leitor senta-se para ler sossegado e, sem saber como, está a permitir-se levar porrada. Permite que Ashley Audrain o espanque durante 338 páginas que são 338 socos. É porrada psicológica e emocional numa literatura que é combate, renúncia da fofura, realidade como humanidade.

O livro não só não dá nenhuma resposta como coloca mil perguntas, e a sua grande magia é a confusão que provoca. Não será possível lê-lo incólume, sem querer saber o passo seguinte e, acima de tudo, sem querer compreender os anteriores. Quem provocou quem? Quem odiou quem? O que parece inato é aprendido? Imaginar que não há amor provoca o desamor? Daí ao ódio, vão quantos centímetros? E tudo isto numa tensão que se aguenta com uma mão narrativa tão firme quanto ferro literalmente até à última palavra.