Quem lê estas crónicas sabe o que esperar. Os temas do dia e as tecnologias do momento escrutinadas com a cabeça fria e um ceticismo saudável de quem já esteve dentro deste meio tecnológico, mas saiu (quase) a tempo. Opiniões fortes, às vezes, mas sempre formadas e explicadas com algum cuidado. Hoje, o que queremos saber é se os NFT são uma parvoíce de todo o tamanho ou não. Mas, antes, duas clarificações:

1) “Vamos” quem?
2) E o que são mesmo NFT?

Quanto ao primeiro ponto, convidei as duas partes de mim de que menos gosto para um debate amigável. A primeira é o “Velho do Restelo”, a segunda é o “Liberal do Norte”. É entre elas que a discussão se vai fazer. Quanto àquilo que os NFT são, podemos fazer um resumo rápido. Não podemos prometer é conseguir explicar o que são de forma que faça sentido: não há papel no mundo que possa tornar isto claro. Nem num jornal digital.

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Em três palavras os NFT são: propriedade digital autenticada. Em mais palavras do que isso são coisas digitais que, por terem metadados (dados sobre outros dados) associados dão para copiar, mas a original será sempre distinguível das outras, apesar de, à primeira vista, não ser distinguível de todo. Falamos de uma música, um tweet, ou um GIF, que podem ser descarregados ou partilhados milhares de vezes totalmente de graça, sem perderem qualidade nenhuma. E não são a música, o tweet ou o GIF original. Com os NFT, agora um de nós pode pagar por elas para poder dizer: cá está, esta é a original. Até aqui, tudo certo?

[E é assim que começa o estranho diálogo entre as duas partes de mim que tanto se opõem]

Francisco Velho do Restelo: Tudo certo o quê? Até aqui, tudo errado. A ver se nos entendemos: há pessoas que estão a pagar dinheiro por um GIF. Um GIF igual a qualquer outro. Aliás, posso ter no meu telemóvel um GIF e um de vocês ter exatamente o mesmo GIF no vosso, e podemos usá-lo os dois, mas vocês gastaram 2 mil euros para terem “esse GIF original”.

Francisco Liberal Nortenho: E que mal é que isso tem? Se têm dinheiro para gastar e querem comprar um GIF, quem somos nós para nos queixar?

Francisco Velho do Restelo: Mas é igual a todos os outros GIFs.

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Francisco Liberal Nortenho: Certo, mas isso acontece no mundo da arte também e não ouves ninguém a queixar-se de que um Mona Lisa falsificado é mais barato do que o autêntico. Ironicamente, este conceito de que a autenticidade tem valor económico é artificial. Se os dois quadros fossem idênticos em todos os outros aspetos, tu tirarias exatamente o mesmo prazer de olhar para um quadro ou para o outro, não? Ambos cumprem com a sua função de forma igualmente satisfatória.

Francisco Velho do Restelo: Calma, mas por falar em arte… Sabes que o Beeple vendeu esta coisa por 69 milhões de dólares? Num leilão da Christie’s?

Francisco Liberal Nortenho: Quem é o Beeple?

Francisco Velho do Restelo: Não interessa. O que interessa é que foi o terceiro “quadro” de um “artista” vivo mais caro da história, 15 milhões mais caro do que um dos melhores quadros do Monet (não fui o primeiro a fazer essa comparação, foi outro).

Francisco Liberal Nortenho: Certo que isso é um bocado fora, mas não achas que é o mercado a funcionar? É a arte a valer o que as pessoas quiserem dar por ela e são as pessoas (com mais dinheiro do que juízo) que estão dispostas a gastá-lo em coisas, mesmo que sejam estúpidas, só para provarem que conseguem comprar coisas que os outros não conseguem comprar?

Francisco Velho do Restelo: Mas se nos lembrarmos de que, em janeiro deste mesmo ano (2021 depois de Cristo, ou 3045 depois de Corona), uma espécie de Blockbuster de jogos de computador era das empresas mais bem cotadas da bolsa americana, conseguimos continuar a fingir que o mercado funciona?

Francisco Liberal Nortenho: Será que isto não é tudo dores de crescimento? Uma questão geracional? Nos Estados Unidos há autocolantes de jogadores de baseball que valem 3 milhões de dólares. Ou melhor, que foram vendidos e que foram comprados por esse valor. E, para muitas pessoas dessa geração, isso não é nada do outro mundo. Estão habituadas a que uma coisa parva como um cromo (ou um anel de diamantes, ou uma licença do Microsoft Office) custe muito mais do que devia. Estão só assustadas que a geração seguinte tenha dinheiro para gastar em mais coisas do que tostas de abacate e decidido gastar em NFT.

Francisco Velho do Restelo: Certo.

Francisco Liberal Nortenho: E depois tens casos como o do Twitter, em que alguém decidiu comprar o primeiro tweet de todos por quase 3 milhões de dóalres. Sim, é só um tweet. E sim, nem se quer é um tweet muito bom. Tudo o que diz é “just setting up my twttr” [estou só a criar o meu Twitter, em português]. Nem sequer foram 3 milhões de dólares pelo tweet do Kevfefe. Mas por outro lado, o senhor Estavi, que o comprou, agora tem o primeiro tweet. É literalmente dono dele. De algo que fez história, de uma rede social que ajudou a eleger Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos e que levou à construção de um muro entre dois mundos. Um bocado como o muro de Berlim… Se houvesse uma forma de saber qual tinha sido o primeiro tijolo desse muro, e alguém o pusesse à venda, se calhar também vendia bem, não?

Francisco Velho do Restelo: Certo.

Francisco Liberal Nortenho: Então, porque é que não podes deixar que vendam ou comprem o primeiro tweet? Repara, foi só por 3 milhões, o que é bem mais barato do que aquilo que se pagou por isto.

Francisco Velho do Restelo: Porque todo o mercado são crypto Bros (uma espécie de irmãos das criptomoedas)? Porque ainda nem tivemos tempo de perceber o que são NFT e já tivemos tempo de perceber que investir neles vai correr mal? Já que tanto artistas como colecionadores estão a perder com burlas, o que é no mínimo irónico tendo em consideração que toda a ideia disto era garantir a autenticidade das coisas que são compradas e vendidas?

Francisco Liberal Nortenho: Mas e se investir num NFT não for assim tão diferente de comprar um Noronha da Costa? Há pessoas que estão dispostas a fazê-lo, cientes de que estão a pagar uns milhares por uma peça igual a mil outras. Mas não fizeram nada de ilegal, nem de imoral. E se não vemos ninguém a revoltar-se por cada quadro que é comprado ou vendido, porque é que preocupariam com este fantasminha da Gucci que foi vendido por quase 4.000 dólares?

Francisco Velho do Restelo: Queres que eu responda a isso ou…?

Francisco Liberal Nortenho: Não, se calhar isto dos NFT é uma parvoíce de todo o tamanho.

Francisco Velho do Restelo: Ou se calhar o parvo mesmo é estarmos a perder tempo com uma moda que só afeta uns quantos artistas e meia dúzia de bilionários? Para não falar do parvo que é estar a escrever neste registo.

Francisco Liberal Nortenho: E que mal é que isso tem? Se calhar este artigo é como um NFT, que se calhar é como uma Mona Lisa falsa, ou um Noronha da Costa verdadeiro. Não é um bom investimento, mas se nos querem comprar um artigo destes, quem somos nós para nos queixar?

E é aqui que o “velho” que há em mim e o “lberal” que passei a vida toda a esconder se encontram. É parvo investir em NFT? É. A quantidade de pessoas que vai perder com isto excede em muito a quantidade de pessoas que vão ganhar com ele? De certeza. E é meio surreal achar que isto é arte? Claro.

Mas, e se o Berardo ficar muito mais feliz por ter a maior coleção de GIF de Portugal? Vocês sabem tão bem quanto eu que esse dinheiro não seria gasto a pagar dívidas, por isso, que diferença nos faz? No final do dia, ambos concordam que é preciso viver e deixar viver, gastar e deixar gastar. E se alguém quiser comprar um NFT da nossa autoria, por favor, peçam o nosso contacto ao Observador.

Nota: E agora duas palavras um pouco mais sérias. Vocês sabem que nós fazemos pouco deste mundo digital. Mas há quem faça muito por ele. Uma dessas pessoas foi a Virgínia Coutinho, que morreu na terça feira passada. Deixou aos que ficam a obrigação de mudar o mundo por ela e criou um fundo para promover a inovação e o empreendedorismo entre as mulheres de Moçambique para nos ajudar a começar. Se quiserem, se puderem, doem.

Nós apoiamos este fundo: se não for por mais nada, que seja porque nos parece uma ótima ideia investir no empreendedorismo tão longe de cá.

*Francisco Peres escreve artigos a fazer pouco de anglicismos mas tem como títulos profissionais as palavras copywriter e content strategist. Até à data de publicação deste artigo trabalhava com várias startups, mas suspeita que isso está prestes a mudar