Aconteceu há 40 anos, a 30 de abril de 1981. Os Clash, na altura a banda punk mais famosa do mundo, atuaram no Dramático de Cascais. O bilhete custou 400 escudos (2 euros) e foi pago, segundo a imprensa da época, por mais de 10 mil pessoas, um número no mínimo extravagante para qualquer banda punk em Portugal. Só que em 1981, nem os Clash eram propriamente punk, nem Portugal estava na rota das digressões internacionais. Na época, qualquer concerto era um acontecimento, por isso, nem todos os que assistiram ao dos Clash seriam de facto fãs da banda. Alguns provavelmente foram porque ir a concertos era um ritual e o Dramático de Cascais tinha boa reputação. Para todos os efeitos, a noite ficou para a história. Foi a única vez que os Clash atuaram em Portugal. Tinham acabado de editar Sandinista, um álbum triplo, com 36 canções carregadas de ativismo político que disparavam em várias direcções: punk, rock, rockabilly, reggae, dub, calypso, rap, até uma pseudo valsa.

Sandinista, que vai buscar o nome à Frente Sandinista de Libertação Nacional da Nicarágua, força rebelde que em 1979 tirou do poder o ditador Anastasio Somoza, apoiado pelos Estados Unidos, foi um disco especialmente problemático, tanto na forma como no conteúdo. Desde logo no título, também no formato e nas letras das músicas, mas igualmente na política de vendas. A banda insistiu que o disco tivesse um preço razoável, o que fez com que só recebessem royalties depois de vendidas 200 mil cópias e, mesmo assim, apenas metade do que seria normal. Não era a primeira vez que os Clash debatiam argumentos com a editora. London Calling, o álbum anterior, tinha sido editado como duplo à custa de muita insistência dos Clash. Menos de um ano depois, saía The River, de Bruce Springsteen, um álbum duplo aclamado por todos. Os Clash resolveram responder. Joe Strummer, em entrevista à Rolling Stone em 1982, confirmava: “Toda a gente disse que éramos doidos em lançar London Calling como duplo álbum, e depois o Bruce Springsteen lançou The River duplo. Por isso pensámos: está bem Bruce, suck on this!”

[“The Magnificent Seven”, os Clash em 1981:]

Gravado entre Manchester, Londres, Nova Iorque e Kingston, na Jamaica, Sandinista é um exercício de libertação de todas as amarras. Em 1980, os Clash são a prova viva de que o punk já não é só cabelos espetados, pins, vómitos e instrumentos mal tocados. Na verdade, o punk, embora pareça cristalizar-se na imagem e som dos Sex Pistols, começou cedo a cansar-se desse primarismo de postal ilustrado. Depois do fim dos Sex Pistols em 1978, o próprio Johnny Rotten (que passou a assinar John Lydon) procurou novos horizontes com os Pil, um dos nomes mais emblemáticos da cena pós punk britânica, certamente menos relevantes historicamente do que os Pistols, mas muito mais interessantes e desafiantes do ponto de vista musical. Os Clash sempre tiveram mais elasticidade do que os Pistols, talvez porque soubessem de facto tocar instrumentos e fossem mais elaborados na mensagem. Em Sandinista, o quarto álbum, são um quarteto mágico à procura de novas aventuras e com coisas para dizer sobre o estado do mundo. Mick Jones, Joe Strummer, Paul Simonon e Topper Headon fazem justiça ao princípio de não haver regras no punk e quebram, misturam, desmontam, experimentam, o que surpreendeu muita gente, incluindo portugueses. “Magnificent Seven”, um proto-rap, acaba por se tornar numa espécie de hit, e os Clash ganham estatuto de ícones quase pop (em Sandinista eram quase, no álbum seguinte, Combat Rock, de 1982, já não havia dúvidas).

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Em 1981, os Clash não eram propriamente conhecidos em Portugal, mas António Sérgio passava com insistência na rádio e isso gerou um pequeno culto e interesse extra pelo concerto no Dramático de Cascais. Miguel Melo tem 56 anos, é arquiteto, e esteve lá. Na altura vivia em Oeiras, já tinha uma banda (os Youngsters, depois fundou a Academia da Euphoria), mas ainda não tinha visto muitos concertos. Confessa que foi ver os Clash com 2 amigos por influência de António Sérgio, que na altura fazia o Rolls Rock nas madrugadas da Comercial. “Não ouvíamos os Clash assim tanto”, diz Miguel “conhecíamos o London Calling porque um amigo tinha o disco e às vezes, depois da praia, íamos para casa dele ouvir música. Mas naquela altura o Sandinista tinha acabado de sair e o António Sérgio passava o “Magnificent Seven” e o “Somebody Got Murdered” todos os dias e aquilo não nos soava aos Clash que conhecíamos, mas de tanto ouvir começámos a gostar. Não era um disco imediato como o London Calling, tinha dub e reggae…”.

A influência jamaicana não era nova nos Clash, mas a ida a Kingston e o trabalho com Mikey Dread em Sandinista, tornaram tudo muito mais sério. Também isso era estranho para Miguel Melo, que na altura tinha como referência reggae os UB40 e não percebia porque razão os Clash estavam a ir por ali. Em Portugal, essa ligação do punk britânico ao reggae, feita logo nas origens com ajuda de Don Letts, realizador e DJ que passava discos no clube Roxy, era mais difícil de perceber, mas acabou por funcionar como factor exótico de atração para um público mais familiarizado com UB40 e Bob Marley do que com o punk (embora na altura Bob Marley também já tivesse estabelecido uma ligação com “Punky Reggae Party”).

[“Somebody Got Murdered”:]

O concerto no Dramático agregou gentes muito diferentes, não necessariamente punks de uniforme, porque na altura a necessidade de vestir a rigor ainda não imperava. Miguel Melo lembra-se que a maior parte dos amigos não foi, porque não conhecia os Clash, mas os comboios da linha de Cascais estavam cheios e até houve algumas adesões de última hora: “Um amigo meu, que estudava à noite, não teve aulas porque o professor de Filosofia tinha escrito ‘The Clash’ no quadro e ido ao concerto. O meu amigo nem era para ir, mas acabou por aparecer também! O ambiente era fantástico”, continua Miguel, que na altura, por ter uma banda, estava particularmente atento a pormenores técnicos: “Não liguei muito ao Joe Strummer, liguei sobretudo ao baterista [Topper Headon] porque nunca tinha visto ninguém tocar como ele, a misturar rock e reggae, punk, tinha uma técnica muito especial. E lembro-me do sorriso do Mick Jones e de uma espécie de tarola ligada a processadores eletrónicos, que ele às vezes usava, voltado de costas para nós, para fazer uns ecos”. Miguel Melo lembra-se também que cheirava muito a “banana”: “Na altura alguém disse que era ópio, não sei, a verdade é que um dos meus amigos desapareceu e só apareceu no final, com uns olhos à Volkswagen e um ar de felicidade brutal por causa daquele ambiente todo”. Na verdade, o perfume no ar do Dramático de Cascais acabou por ser referido em quase todos os artigos de imprensa, até porque houve partilha de fumos entre banda e público, talvez efeito do reconhecimento das influências jamaicanas na música dos Clash.

Pormenor importante neste primeiro e único concerto dos Clash em Portugal: a primeira parte foi feita pelos Táxi, na altura no auge do sucesso de “Chiclete”. Os Táxi receberam 15 contos (75 euros, os Clash terão recebido 10 mil dólares, segundo a imprensa da altura) para tocar e tiveram direito a encore. Segundo João Grande, vocalista da banda, num artigo na Blitz em 2017, Joe Strummer deu os parabéns aos Táxi porque pela primeira vez uma banda de suporte tinha tido direito a encore. Miguel Melo também se lembra dos Táxi na primeira parte. “Foram muito eficazes e competentes, aquilo batia realmente. Da Pearl Harbour & The Explosions (outra banda na primeira parte, liderada pela então companheira de Paul Simonon) é que não me lembro de grande coisa, não me incentivou muito”. Quarenta anos e muitos concertos depois, é natural que a memória não retenha já todos os pormenores do que aconteceu naquela noite, mas o essencial parece permanecer para todos os que estiveram lá: o concerto dos Clash no Dramático de Cascais foi histórico. Não interessa que as críticas na imprensa portuguesa da altura tenham sido pouco entusiásticas, interessa a marca que aquela noite deixou em quem lá esteve.