Os museus da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, vão voltar à clássica divisão em dois: o Museu Gulbenkian, com entrada pela Avenida de Berna, e o Centro de Arte Moderna (CAM), ao qual se acede pela Rua Nicolau Bettencourt, do lado do centro comercial El Corte Inglés. Era este o figurino que vigorava até outubro de 2015, quando tomou posse a então diretora Penolope Curtis. Nessa ocasião, os administradores e a diretora tinham decidido que ambas as instituições se apresentariam ao público sob um mesmo chapéu, o de Museu Gulbenkian. Foi uma das muitas novidades conhecidas nesta segunda-feira de manhã, numa conferência de imprensa que juntou a presidente da Gulbenkian, Isabel Mota, e o administrador Guilherme de Oliveira Martins.

“O Museu Gulbenkian é a joia da coroa e vai ter uma vida própria”, com “coisas belas, grandes peças da humanidade e história”, classificou Isabel Mota. “Desde o início, sempre houve o Museu Gulbenkian e o CAM, só durante um determinado período [2015-2020] é que houve uma orientação comum. O reverter é para um modelo que sempre existiu. A razão principal é que há muitos públicos e muitas formas de os públicos se ligarem à arte e à cultura. As redes internacionais de museus como o Museu Gulbenkian são umas, e as redes de arte contemporânea são outras. Temos de tirar partido das duas coisas”, explicou. Para evidenciar o diálogo entre as duas instituições, a presidente da Gulbenkian fez notar que “o todo vai ser maior do que as partes”.

Estiveram também presentes na conferência de imprensa os novos diretores dos museus: o historiador António Filipe Pimentel, antigo diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, que agora dirige o Museu Gulbenkian; e o curador e crítico francês Benjamin Weil, ex-diretor artístico do Centro Botín, em Santander, agora à frente do CAM.

Ambos tinham sido anunciados em dezembro último, mas esta foi a primeira vez que responderam com tempo às perguntas da imprensa. Foram escolhidos depois de um “processo de recrutamento internacional realizado com o apoio de uma empresa internacional especializada em recrutamento para instituições culturais”, de acordo com a Gulbenkian.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

No Museu Gulbenkian continuará a ser exibida a Coleção do Fundador, ou seja, um conjunto de cerca de seis mil obras desde o Antigo Egipto até ao início do século XX, reunidas pelo empresário de origem arménia Calouste Sarkis Gulbenkian (1869-1955). Esta coleção é estável e só excecionalmente integra novas peças. O CAM tem um acervo de quase 12 mil obras de arte moderna e contemporânea e um orçamento anual médio de 500 mil euros para aquisições.

Na véspera do Dia Internacional dos Museus, que se assinala nesta terça-feira, Isabel Mota quis referir que a data “tem este ano um significado mais relevante”, mediante os efeitos da pandemia e das restrições face à Covid-19. “Os artistas, os museus e a cultura, foram provavelmente dos que mais sofreram com o confinamento e com a falta de oportunidades de trabalho e de possibilidades de criarem. Foi penoso para todos nós”, apontou a presidente do conselho de administração, notando que a Fundação Gulbenkian deu apoios de emergência a criadores e estruturas artísticas e apostou fortemente em exposições e eventos online, o que “veio para ficar”.

António Filipe Pimentel: relações com administração “não podiam estar melhor”

Por seu lado, António Filipe Pimentel assinalou que os museus têm um papel na “educação geral das pessoas”. No estilo direto que o caracteriza, o diretor do Museu Gulbenkian disse que “se tivéssemos uma educação porventura vocacionada para outra sensibilidade cultural, teríamos agido com outra prudência no quadro de emergência que todos vivemos”.

António Filipe Pimentel referia-se à pandemia e também a um dos temas que serão discutidos na primeira Escola de Verão da Gulbenkian, programada para 2, 3 e 4 de setembro em formato presencial e digital. Institula-se Art Matters? Museus e Educação, reunirá especialistas e profissionais de museus e instituições culturais nacionais e internacionais para refletirem sobre os serviços educativos dos museus, a inclusão de diferentes públicos ou a crescente presença do digital perante a pandemia. A Escola de Verão começa a ser divulgada esta semana com uma campanha publicitária nas ruas de Lisboa e nas redes sociais. O título Art Matters evoca o movimento americano antirracista Black Lives Matter, disse António Filipe Pimentel.

O historiador — que esteve nove anos à frente do Museu Nacional de Arte Antiga e saiu no verão de 2019 com fortes críticas ao Governo por causa do estatuto jurídico de autonomia dos museus públicos — garantiu que vem aí “uma nova fase de crescimento e não um regresso ao passado” no Museu Gulbenkian, caracterizada no pós-pandemia por uma procura mais esclarecida. “O turismo de massas irá desaparecer em favor de um turismo mais informado e qualificado, que permanece mais tempo e com maior atenção”. Garantiu ainda que “está em cima a mesa” a contratação de novos curadores para núcleos específicos da Coleção do Fundador. “É uma evidência, é um processo que tem a sua delicadeza, temos de ter pessoas cirurgicamente cooptadas. É um processo que tem de ser iniciado a breve trecho, mas não é para amanhã”, explicou.

Tendo em conta que a antiga diretora, Penelope Curtis, disse em entrevista ao Público a 25 setembro do ano passado que “administração tomava decisões sem consultar o museu” e se reunia “à porta fechada”, pelo que “não era possível ter uma conversa sobre o que o museu pode ser”, o Observador perguntou nesta segunda-feira a António Filipe Pimentel em que ponto está o relacionamento com a cúpula da Fundação Gulbenkian. “As nossas relações não podiam estar melhor, estou confortável e tem corrido tudo muito bem”, respondeu, acrescentado que conhece “desde há muitos anos” Isabel Mota e Guilherme de Oliveira Martins, “o que facilita muito o trabalho”.

A programação com o cunho total de António Filipe Pimentel só começará no outono de 2022. Uma dessas propostas foi agora conhecida: a exposição Faraós Superstar, classificada pelo diretor como “a maior exposição alguma vez feita em Portugal sobre egiptologia”, no quadro da comemoração dos 100 anos da descoberta do túmulo da faraó Tutancámon, por Howard Carter no Egipto.

Isabel Mota, presidente do conselho de administração da Fundação Calouste Gulbenkian

Coleção de arte moderna e contemporânea vai “apostar na diversidade”

Várias outras novidades foram conhecidas nesta segunda-feira. O arranque, neste mesmo dia, das obras no CAM e nos jardins da Gulbenkian, com projeto do arquiteto japonês Kengo Kuma e intervenção paisagística de Vladimir Djurovic (o mesmo do jardim do MAAT — Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, em Lisboa). O estaleiro de obra já estava instalado nesta segunda-feira e a conclusão da empreitada pode acontecer dentro de 12 a 18 meses, mas não é certo. Só nessa altura será possível reabrir o CAM, que terá nova entrada, pela Rua Marquês de Fronteira. A Fundação Gulbenkian conclui nos últimos meses negociações para se tornar proprietária de uma área entre o CAM e aquela rua, o que levará o visitante a passar pelo jardim até chegar ao CAM.

“Talvez seja possível abrir o CAM no fim do verão do próximo ano ou em inícios do outono. Ainda é cedo para dar uma data concreta”, comentou Benjamin Weil, que pediu desculpa por não saber português e falou em inglês. “Até lá, vamos manter o contacto com o público através de exposições no edifício principal da Gulbenkian e através da internet.” Acerca da coleção de arte moderna e contemporânea, o diretor afirmou que “não se trata de colecionar troféus”, mas de “um processo de apoio às artes”, querendo dizer que uma das prioridades é a aquisição de obras apresentadas nas futuras exposições.

“Penso que não precisamos necessariamente de comprar para preencher eventuais lacunas da coleção, porque esse rigor histórico não é assim tão relevante. Precisamos, sim, de apostar na diversidade, em artistas de diferentes comunidades e contextos culturais, incluindo os ligados ao passado colonial português. O público que nos visita tem diferentes origens e deve sentir que aquilo que mostramos é representativo das suas origens”, explicou Benjamin Weil.

Ao nível das exposições temporárias pensadas para os próximos meses, e anunciadas na conferência de imprensa, destaca-se Tudo O Que Eu Quero, de 2 de junho a 23 de agosto, mostra de 200 obras de mulheres artistas portuguesas, com curadoria de Helena de Freitas e Bruno Marchand — proposta inserida na programação da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia e inicialmente pensada para o Palácio das Belas-Artes (Bozar) de Bruxelas, onde não chegou a apresentar-se devido a um incêndio.

De 24 de junho a 4 de julho, a iniciativa P de Dança, com 19 criações de dança contemporânea, algumas inéditas, comissariada por João Santos Martins. Em setembro, os 700 anos da morte de Dante Alighieri assinalam-se na mostra Visões de Dante, com destaque para dois desenhos sobre pergaminho de Sandro Botticelli alusivos à obra Divina Comédia e pertencentes à Biblioteca Apostólica Vaticana.

Em outubro surgirá a exposição Hergé, original do Grand Palais de Paris e dedicada ao criador de Tintim. No mesmo mês, Manoel de Oliveira Fotógrafo, com mais de uma centena de fotografias do arquivo pessoal do realizador, produzidas entre fins de 1930 e meados dos anos 1950, na sua maioria inéditas.

Peitoral “Libélula”, de Lalique

Esplendor das peças de René Lalique

Ficou ainda a saber-se do lançamento de um “monumental catálogo digital que reúne toda a memória das exposições de arte” da Gulbenkian, de 1957 a 2016. O projeto do catálogo foi feito em parceria com o Instituto de História da Arte, da Universidade Nova de Lisboa, e iniciou-se em 2014 sob proposta da historiadora Helena de Freitas, tendo envolvido nos últimos anos Leonor Nazaré e Raquel Henriques da Silva.

Anunciou-se também a reabertura da Sala René Lalique para esta terça-feira — dia em que a entrada será gratuita. Neste mesmo espaço, à esquerda de quem entra no Museu Gulbenkian, a conservadora Luísa Sampaio explicou ao Observador, já depois da conferência de imprensa, que se trata da terceira remodelação, depois das propostas expositivas dos anos 90 e do início dos anos 2000.

“As novidades são totais”, resumiu a conservadora. “Tínhamos uma sala totalmente branca, com grande destaque para a produção vidreira de Lalique. Alterámos esse paradigma. As paredes são negras, a luz está concentrada apenas nas peças e as grandes e mais célebres joias de René Lalique, como o peitoral Libélula e o peitoral Serpentes, estão agora na frente da sala e dão as boas-vindas ao visitante.”

As peças do famoso vidreiro e joalheiro francês, num total de 77 (das cerca de duas centenas que fazem parte da Coleção do Fundador), apresentam-se em vitrines e estão organizadas por temas, como a inspiração clássica, a natureza, o Japão ou a produção vidreira. “Penso que é um dos grandes destaques do museu, porque em termos de quantidade e qualidade é difícil ultrapassar esta coleção de joias de Lalique”, classificou Luísa Sampaio.