Título: A Armadilha
Autor: Emmanuel Bove
Editor: Sistema Solar
Tradutor: Aníbal Fernandes
Páginas: 224
Preço: 15,00 €

Independentemente de nos tomarmos como o último Cioran da Lusitânia ou grandes entusiastas da vida, costuma haver em nós uma tranquilidade de fundo. Essa tranquilidade expressa-se no facto de quase nunca questionarmos o nosso comportamento, e parece ter origem na pretensão de dominarmos muito bem o que se passa. Mas como seria se nos apercebêssemos de que existe um fosso de comunicação entre nós e as pessoas de quem precisamos? Se o dia de amanhã, em vez de prometer mais um jogo do Euro entre amigos, se tornasse indistinto como névoa cerrada? Se a minha vida — o sentido que me anima, o corpo que me permite estar aqui — passasse a estar em risco?

Bridet, o protagonista de A Armadilha de Emmanuel Bove (editado pela Sistema Solar com tradução de Aníbal Fernandes), é alguém encalhado num pesadelo deste tipo. Tudo se passa em França, entre 1940 e 1941, no tempo da dominação alemã. Farto de vaguear sem propósito por cidades humilhadas pelo acordo com a Alemanha, Bridet toma a decisão de ir para Inglaterra, para se juntar a De Gaulle e à resistência. O plano consiste nisto: fingir diante das autoridades o desejo de servir o marechal Pétain nas colónias; conseguir dessa forma um salvo-conduto; e, uma vez fora do país, arranjar maneira de ir parar a Londres. O que o espera, no entanto, é muito diferente. Um pesadelo de papéis, corredores, gabinetes ministeriais, declarações ambíguas, burocratas difíceis de entender, promessas adiadas. E a transformação do seu projeto heroico numa revelação da própria impotência.

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A história de A Armadilha vai-se desenrolando num estilo despojado, feito de frases claras, diálogos rápidos e ambientes minimalistas — um estilo que, na sua fria simplicidade, produz um contraste angustiante com a trapalhada em que o protagonista está metido, adensando assim o desconforto que perpassa todo o romance. Embora Emmanuel Bove privilegie a fluência da narração, e dê espaço para que os acontecimentos “falem por si”, o texto oferece também comentários de grande finura psicológica, que tornam ainda mais evidente o facto de não estarmos apenas diante de um mais uma história bem contada sobre a Segunda Guerra Mundial. É o caso desta passagem, na qual os apelos supostamente brutais dos franceses contra os alemães são lidos como testemunhos melancólicos da sua pequenez: “Mas o que mais impressionou Bridet foi ver em quase todas as paredes inúmeras inscrições, desenhos, grafittis de todas as espécies que revelavam o carácter derrotista dos parisienses. Libertava-se uma grande tristeza daqueles inofensivos ‘Morte aos Boches’. Sentia-se que era a única liberdade impossível de lhes ser retirada e usavam-na para ter, pelo menos, qualquer coisa para fazer.”

Mais do que nesta ou naquela passagem, porém, o talento de Bove revela-se na criação do ambiente claustrofóbico em que toda a ação decorre. Há uma impressão permanente de mal-estar na qual nós, leitores, ficamos imersos do início ao fim, e que justifica a aparição da palavra “kafkiano” na maior parte das descrições do romance. Esse ambiente claustrofóbico alimenta-se das meias-palavras dos funcionários franceses, das constantes idas e vindas a Vichy, da boa-vontade desastrada de Yolande, dos volte-faces negativos na tentativa de obtenção do salvo-conduto, mas também do efeito que tudo isso vai tendo sobre a imaginação do protagonista. Bove explora bem o poder desta faculdade, através de referências aos constantes avanços e recuos do pensamento de Bridet — que segue, de forma paranoica, um percurso paralelo à realidade desconhecida do seu processo político. Também contribui para esta impressão de sufoco generalizado uma ideia que terá marcado a experiência de Bove durante a guerra, tantas são as vezes em que o livro insiste nela. Trata-se da ideia de que, em vez de unir os franceses em torno de um sofrimento comum, em vez de dar azo a uma solidariedade nova e diligente, a hegemonia alemã apenas veio confirmar que as pessoas vivem centradas nas suas preocupações pessoais: “Davam-se apertos de mão, fazia-se um esforço para o mostrar o mesmo ar contente, tanto ao primeiro como ao décimo encontro, mostrava-se simpatia na imensa catástrofe, fingindo acreditar que a desgraça unia mais do que dividia; mas bastava deixarmos de falar na miséria geral e fazermos a tentativa de interessar alguém por um caso particular, para encontrarmos à nossa frente um muro.”

Mas o aspeto mais notável do romance talvez seja a forma como, apesar de girar em torno de um resistente com um projeto grandioso, constrói uma narrativa sem qualquer tipo de triunfalismo. Na verdade, se é óbvio que o romance procura retratar o que se passou em França num dos períodos negros da sua história, e se acaba por ganhar a dimensão de uma mise-en-scène do problema de interpretação que a vida sempre é, A Armadilha pode ser vista também como uma história acerca da distância entre os grandes ideais que forjamos e aquilo a que Baudelaire chamou “l’accent criard de la réalité”. Pois, apesar de nunca ceder perante um inimigo terrível, injusto e poderoso, Bridet não corresponde ao protótipo do herói. É alguém com uma intenção boa, com uma firmeza de critérios admirável no tempo mais propício aos cataventos; mas é também um homem com doses abundantes de “inabilidade”. De facto, ao longo do livro, não são só os expedientes de um regime execrável, ou as artimanhas de funcionários pouco escrupulosos, que levantam obstáculos ao êxito de Bridet. Ele é desajeitado na sua representação de apaixonado colaboracionista; falta-lhe a coragem várias vezes; as suas paixões perturbam-no em momentos decisivos; não pára de pensar que, em vez de ter agido assim, devia ter agido assado; e a certa altura, ensinado pelo que aconteceu antes, o leitor já sabe que cada nova resolução que Bridet toma só pode ser lida com desconfiança, não porque ele seja um hipócrita descarado, mas porque a situação a viver nunca será na prática como ele a imagina. Numa palavra, com toda a sua boa vontade, Bridet é também parte do pesadelo que vive. O ridicolosissimo heroe!