Não será muito arriscado chamar à Metafísica de Aristóteles o livro mais importante da História da Filosofia. É claro que A República está mais disseminada pela memória coletiva e que é a porta de entrada para a maior parte dos aspirantes a filósofos, como é certo que a Crítica da Razão Pura transformou a Filosofia de tal modo que tudo o que a ignore pareça inútil e obsoleto. No entanto, nem a Crítica da Razão Pura, nem a fenomenologia de Husserl e Heidegger, nem sequer as mais argutas toadas nietzschianas conseguiram dominar o vocabulário e os problemas da metafísica como a Metafísica de Aristóteles.

Vemo-lo ao longo da História da Filosofia: nos seus Progressos da Metafísica, que deveriam expor os avanços conseguidos na filosofia primeira desde o tempo de Leibniz e Wolff, mostra que a pergunta está mal feita – na verdade, entre Aristóteles e o próprio Kant não haveria progresso nenhum na metafísica. São Tomás chama a Aristóteles o Filósofo, por antonomásia, e mesmo Heidegger, embora vá atribuindo variável importância aos filósofos pós-Socráticos e tenha relações ambíguas com a Idade Média, parece ver em Aristóteles o último gigante. Isto é, em todas as revoluções filosóficas, só a Metafísica parece restar.

Se a Filosofia se distraiu durante mais de vinte séculos com o problema das essências, foi Aristóteles o último a perceber que o problema fundamental da Filosofia é o problema do Ser; se os filósofos orientais, Avicena, Averróis, até Al-Farabi, são violentamente contestados pelo seu discurso sobre a eternidade do mundo ou sobre a unidade do intelecto, sobra Aristóteles como o único filósofo seguro, em quem as hipóteses da razão são confirmadas pelas certezas da fé.

A nova edição da “Metafísica” de Aristóteles, pelas Edições 70

Este estranho livro, tão fragmentário como sistemático, composto de fragmentos que se destinariam obviamente a livros diferentes, mas cheio de relações internas é, no fundo, a gramática da Filosofia. Se queremos perceber quais são as categorias que nos fazem olhar para o mundo tal como o vemos, o que é que faz com que uma coisa seja aquilo que é e o que é que faz com que, mudando elementos, ela permaneça a mesma, estamos sempre a vaguear entre as hipóteses Aristotélicas. Não há pensamento que não seja uma reinterpretação da linguagem Aristotélica e que não se dirija à metafísica: quando a fenomenologia mostra que as categorias mais importantes para perceber aquilo que nos rodeia são as categorias existenciais, está ao mesmo tempo a corrigir e a confirmar as ideias de Aristóteles. Sim, as categorias podem não estar nas coisas, o espaço ou o tempo podem não estar nas coisas, ser independentes delas e marcados por fatores existenciais, como o tédio ou a angústia, mas a verdade é que estas categorias existem.

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Quando, na Filosofia moderna, se discutem juízos analíticos e juízos sintéticos, quando se discute se tudo aquilo que compõe um ente é necessário para que ele seja aquilo que é, está-se na verdade a renovar as distinções aristotélicas entre substância e acidente, como as grandes empreitadas iluministas estarão na verdade a tentar livrar-se da noção de forma, tal como é dada em Aristóteles, para fazer prevalecer a sua ideia de matéria.

O problema da construção da Metafísica tem ocupado os filólogos ao longo dos séculos porque ela é, de facto, um livro por polir. O livro alfa minúsculo parece de facto ser um texto independente, e, como nota Werner Jaeger, há uma diferença grande, de livro para livro, no tom com que Aristóteles critica as teses de Platão sobre as ideias. Werner Jaeger, aliás, explica que haveria pelo menos duas versões da Metafísica, uma que já estaria pelo menos em preparação durante o tempo em que foi escrito o diálogo, de que hoje só temos fragmentos, sobre a Filosofia, e outra que seria do fim da vida. Dentro da metafísica poderíamos, assim, assistir ao progressivo afastamento, por parte de Aristóteles, da Academia, e àquilo que provocou a formação do Liceu.

Nesse sentido, a Metafísica seria, acima de qualquer outra coisa, um livro sobre o problema dos conhecimento, na sua ligação com a velha questão, que tanto ocupará a Idade Média, dos Universais. Ora, isto, só por si, seria insuficiente para dar à Metafísica toda a dimensão que ela tem. Todo o Organon de Aristóteles é fundamental para percebermos o modo como conhecemos e como captamos ideias. Dos analíticos ao da interpretação e às categorias, praticamente tudo sobre o modo de pensar é percebido por Aristóteles. Ao mesmo tempo já há, na física, uma série de conceitos que permitem perceber o mundo exterior. A mudança, através das ideias de ato e potência, a identidade, através das noções de essência e acidente, entre outras.

Ora, a Metafísica está para lá destes dois mundos porque os relaciona. A ideia de que a nossa compreensão do mundo é afetada pelo nosso modo de compreensão, de que o olhar contamina a compreensão dos objetos, transforma a sua essência, faz da forma o grande motor do reconhecimento, torna a função, a causa final, a parte mais imediatamente reconhecível da substância, é uma das grandes revelações da Metafísica. Além da linguagem que balizou a Filosofia ao longo dos séculos, além dos temas que ainda são discutidos, Aristóteles, o Homem das grandes divisões, das categorias, dos géneros e das espécies, fez explodir, com a Metafísica, as divisões filosóficas. A metafísica mostra-nos que a ética contamina a epistemologia e que a epistemologia contamina a ontologia. Que o nosso modo de agir está organizado causalmente, de tal forma que as causas segundas dependem de causas primeiras, e todas elas influenciam a nossa perceção do mundo e o modo de conhecer. Do mesmo modo, não conseguimos libertar-nos deste ponto de vista (era o que levava São Tomás a falar da matéria como o responsável pela individuação, ao mesmo tempo que explicava que nunca conseguimos ver realmente matéria, apenas forma), pelo que a ideia que temos das próprias coisas é uma ideia minada pelo nosso próprio olhar, que não é neutro.

A história da Filosofia explorou até à exaustão as diferenças entre Platão e Aristóteles; apesar disso, e na senda do próprio Aristóteles, os grandes filósofos, de Porfírio a Boécio, sempre perceberam que havia uma afinidade fundamental entre os dois. Ora, esta afinidade é expressa na Metafísica e na demonstração de que aquilo que, como é dito na primeira e famosa frase do livro – que “todo o Homem tem naturalmente o desejo de ver” – é eminentemente metafísico. Não vemos as coisas como elas são, vemos substâncias e acidentes, vemos um mundo dominado pelas categorias metafísicas, um mundo que – é essa a própria ideia de metafísica – é moldado por aquilo que não está nele. Não há nada que o Homem mais queira do que ver o mundo, embora aquilo que o conhecimento nos dê não seja o mundo. Desta ideia, vinda da metafísica, tanto pode surgir a religião, como o desespero, como o riso. Em suma, a filosofia.