Um “empréstimo muito especial”, diz a diretora do Mosteiro dos Jerónimos. “É a peça que, não estando em Portugal, melhor evoca a figura de D. Manuel e celebra o seu legado”, acrescenta Dalila Rodrigues. Vinda do Musée de l’Armée de Paris, a cujo acervo pertence, a muito aguardada armadura chegou a Lisboa na sexta-feira às quatro da tarde. Viajou a bordo de um camião da empresa de logística Feirexpo e a partir desta segunda-feira vai estar em exposição numa vitrine climatizada da Sala da Capítulo, mesmo junto ao claustro dos Jerónimos, na lateral direita do monumento — até 19 de abril de 2022.

Trata-se de uma armadura, ou arnês, que pode ter pertencido a rei D. Manuel I (1469-1521). É grande a aura de mistério. Desde logo não se sabe se, na origem, saiu mesmo de Portugal e o que aconteceu entretanto para ir parar a França. Daí que os especialistas prefiram descrevê-la como “armadura dita de D. Manuel I”, para sublinharem a incerteza que persiste. É dado como certo que o conjunto tem lavra italiana, com influência germânica (“alla tedesca”). Foi fabricado em Milão entre 1510 e 1515 pelo armeiro italiano Nicolaus de Silva (ou Niccolò Silva).

A chegada da armadura à Sala do Capítulo no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa

“A ligação entre esta armadura e o rei D. Manuel I é estabelecida através da esfera armilar, o símbolo único e inconfundível do monarca”, que se encontra gravado em pelo menos três zonas da peça, informa a folha de sala da exposição que agora se inicia. No entanto, é feita a ressalva: “Não se sabe se esta marcação decorre de ter sido pertença pessoal de D. Manuel I ou se de uma oferta sua.”

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Missa e concerto nesta segunda

Dalila Rodrigues, que é também professora de história da arte e investigadora do período manuelino, acrescenta: “Não havendo documentos conhecidos ou pistas objetivas que indiquem a relação da peça com o rei, o rigor obriga-nos a falar em armadura dita de D. Manuel. Ainda na sexta-feira, com recurso a lupa e luz, eu própria identifiquei as esferas armilares. São fabulosas, é absolutamente emocionante olhar a peça. Note-se que a esfera armilar é um indício muito forte. Está presente por todo o lado na Torre de Belém e no Mosteiro de Jerónimos, os dois monumentos que D. Manuel fundou”

D. Manuel I e a arte: um instrumento de propaganda ao serviço do rei e do país

A presença em Lisboa de tão aguardado objeto pretende evocar os 500 anos da morte de D. Manuel I, que se assinalam precisamente a 13 de dezembro. Já nesta segunda-feira, numa iniciativa intitulada “Luz a D. Manuel”, tem lugar às 17h30 uma missa evocativa celebrada pelo cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, com a participação do Polyphonos Ensemble. À noite, a partir das 21h00, é finalmente apresentada a armadura e há ainda a um concerto que inclui a soprano Maria Cristina Kiehr e o alaudista Ariel Abramovich, ambos argentinos. Tudo indica que marcará presença o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Uma reprodução em corpo inteiro da armadura

Desde a incorporação no Musée de l’Armée, em meados do século XX, a armadura terá sido mostrada pela primeira em Portugal em 1983, numa exposição na Torre de Belém. Segundo Dalila Rodrigues, este facto não retira qualquer significado à exibição que agora se organiza. Mais recentemente, entre setembro de 2016 e janeiro de 2017, o arnês passou pela exposição “Orlando Furioso 500 Anni”, em Ferrara (Itália).

“Esta é uma oportunidade de apresentar a peça e de a estudar, reunindo-se especialistas que o saibam fazer”, diz a diretora. “No fundo, a peça permite que se atualize e entenda melhor a ligação de D. Manuel I ao Mosteiro dos Jerónimos, fundado por ele em 1496, no início do reinado. A armadura tem a singularidade de corporizar a presença do rei. Pareceu-me obrigatório trazê-la para a comemoração dos 500 anos”.

Esfera armilar no arnês é “símbolo único e inconfundível” de D. Manuel I

“Riqueza iconográfica infindável”

Tem 1,79 metros de altura e 79 centímetros de largura, regista o site do Musée de l’Armée. A mesma fonte indica que foi pensada como objeto de guerra, embora vários elementos, como a parte superior dos braços ou o reforço da viseira, permitam dizer que se destinava também a “exercícios desportivos”. De acordo com a descrição oferecida pela folha de sala, trata-se de “uma armadura com peças adicionais e adaptáveis a uma tipologia variada de usos, desde o combate de campo à participação nas lides cavalheirescas (torneios, jogos militares e equestres, ou paradas)”. É feita em metal polido, com gravações a ouro. “Tem uma gramática decorativa renascentista na qual pontuam cenas mitológicas e religiosas. É absolutamente fabulosa, de uma riqueza iconográfica infindável”, classifica a diretora dos Jerónimos.

Acredita-se que tenha sido comprada pelo Musée de l’Armée entre 1958 e 1964 a um grande colecionador francês de armaria, Georges Pauilhac. Por sua vez, o colecionador tinha comprado antigas coleções ibéricas, como a coleção Estruch y Cumella, de Barcelona, colocando-se a hipótese de o arnês estar ali incluído. No dizer de Dalila Rodrigues, a provável saída de Portugal, em data incerta, pode ter acontecido no período do domínio espanhol, durante as Invasões Francesas ou a seguir às Guerras Liberais, quando foram vendidas peças do arsenal régio, consideradas obsoletas.

Armadura na Sala do Capítulo, onde vai poder ser vista a partir de dia 14 e até 19 de abril de 2022

Segundo a diretora, a vinda da peça a Lisboa tem o apoio da Fundação Millennium BCP, que já hoje é mecenas da conservação do claustro dos Jerónimos. “Sem este apoio, nada disto teria acontecido”, sublinha. Os contactos com o museu parisiense, situado na zona de Les Invalides, demoraram poucos meses, apesar de interrupções determinadas pela pandemia, e envolveram a embaixada de França em Portugal. O investigador António Conduto Oliveira, responsável pelo projecto online “Repensando a Idade Média”, também participa no projeto.

As leis, os amores e as artes de D. Manuel I, o rei modernista que uniu Portugal

Enchentes em outubro e novembro

Situado frente ao Tejo e também conhecido como Igreja de Santa Maria de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos está classificado como Monumento Nacional desde 1907 e Património Mundial da UNESCO desde 1983. É onde se encontra o túmulo de D. Manuel, além dos túmulos de D. João III, D. Sebastião e do Cardeal D. Henrique. No portal principal, surge uma conhecida representação do rei na posição de figura orante, acompanhado p São Jerónimo (além das estátuas de D. Maria de Aragão e Castela e de São João Baptista), como indicam os dados da Direção-Geral do Património Cultural.

Após o período de restrições, monumento lisboeta começou a recuperar rapidamente o número de visitantes

Dalila Rodrigues, de 60 anos, iniciou funções como diretora dos Jerónimos e da Torre de Belém em maio de 2019, sucedendo a Isabel Cruz Almeida, que dirigiu os dois monumentos durante 35 anos — era a mais antiga diretora em funções de um monumento nacional. Sobre o número de visitantes dos dois espaços recordistas de público em Portugal no que a monumentos e museus públicos diz respeito, a diretora adianta que este ano, apesar das quebras, houve “uma procura crescente a partir de junho, sobretudo em outubro e novembro, por causa da chegada de cruzeiros à cidade”.

Na semana passada surgiram enormes filas à entrada dos Jerónimos, características do período anterior à pandemia, com destaque para visitantes espanhóis. “Quando começaram a circular as notícias da nova variante do coronavírus, sentimos imediatamente uma quebra de cerca de 60%, mas ao fim de 15 dias os turistas começaram a regressar”, aponta Dalila Rodrigues.