A Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) multou a autarquia da capital no âmbito do caso “Russiagate” em 1,2 milhões de euros, depois de a Câmara de Lisboa ter partilhado dados de manifestantes anti-Putin com as autoridades daquele país.

O caso explodiu em plena pré-campanha autárquica e motivou duras críticas de Carlos Moedas a Fernando Medina. Apesar de reconhecer a gravidade da situação, o Observador sabe que é intenção da autarquia contestar a multa para evitar um rombo tão grande no erário público.

A autarquia já reagiu através de um comunicado. “Está decisão é uma herança pesada que a anterior liderança da Câmara Municipal de Lisboa deixa aos lisboetas e que coloca em causa opções e apoios sociais previstos no orçamento agora apresentado. Vamos avaliar em pormenor esta multa e qual a melhor forma de protegermos os interesses dos munícipes e da instituição.”

De acordo com a deliberação a que o Observador teve acesso, a CNPD acredita que está em causa a “violação do princípio da licitude, lealdade e transparência, da violação do princípio da minimização dos dados, na vertente de ‘need to know’ [necessidade de conhecer], da violação do dever de prestar as informações previstas no artigo 13º do RGPD, da violação do princípio da limitação da conservação e da violação da obrigação de realização de uma avaliação de impacto sobre a proteção de dados”. No total, e de acordo com a deliberação da CNPD, foram identificadas 225 infrações cometidas pela autarquia.

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O caso foi revelado em junho de 2021 pelo Observador e jornal Expresso: a autarquia de Lisboa, então presidida por Fernando Medina, enviou por email os nomes e moradas de três pessoas que organizaram uma manifestação anti-Putin às autoridades russas.

Câmara de Lisboa entrega dados de manifestantes anti-Putin aos Negócios Estrangeiros russos

A autarquia reconheceu o erro e abriu uma auditoria interna. Fernando Medina acabou a pedir desculpa e a prometer novas medidas para proteger o direito à manifestação. Mas o caso dos ativistas anti-Putin era apenas a ponta do icebergue: rápido se percebeu que a prática de partilhar dados de manifestantes com embaixadas dos países visados era há muito uma realidade.

Autoridades de países como China, Angola, Rússia, Israel ou Venezuela também receberam dados de manifestantes que protestaram junto às respetivas embaixadas.

Conhecidos os resultados da auditoria interna, a Câmara de Lisboa identificou (pelo menos) 52 casos de envios de dados pessoais e reconheceu que o mesmo protocolo era usado também durante o período de António Costa como presidente da autarquia.

Como consequência, Fernando Medina ordenou a reestruturação nos serviços da autarquia com a exoneração do encarregado de proteção de dados e a extinção do gabinete de apoio à presidência — então responsável por receber os pedidos de manifestação e por cruzar informações com as autoridades locais e embaixadas.

Câmara de Lisboa identifica (pelo menos) 52 casos de envios de dados pessoais. Também aconteceu no tempo de Costa

“Fiquei incrédulo [com a reação]”. Antigo vice-presidente de Medina, e atual vereador pelo PS, ataca Moedas

João Paulo Saraiva, vereador pelo Partido Socialista no atual executivo da CML e antigo vice-presidente durante a liderança de Fernando Medina, afirmou em declarações à RTP3 que “é ridículo” alegar-se que uma multa de 1,2 milhões terá impacto no orçamento da autarquia. “Fiquei incrédulo quando ouvi a reação do presidente Carlos Moedas e da sua equipa de que estariam em causa prestações sociais“, referiu esta tarde, confirmando também que a câmara vai recorrer do processo.

A vida de um município com esta dimensão, com orçamento com mais de mil milhões de euros de indemnizações, são pagos por anos milhões de euros de indemnizações”, diz.

De acordo com o vereador socialista, este montante significa cerca “0,01%” do do orçamento municipal — que ronda 1,5 mil milhões de euros. Para sustentar esta argumentação, o antigo líder da autarquia disse que quando foi vice-presidente da CML, “só de um processo que vem do tempo do engenheiro Abecasis” assinou, “com dor, um cheque de 90 milhões euros”.

Se alguma vez fosse aplicada [a sanção], que não será, significa 0,o1% do orçamento municipal da Câmara de Lisboa. Mal estaríamos se criasse um problema”, aponta.

Quanto ao relatório da CNPD, João Paulo Saraiva disse que o mesmo refere “há ação doloso sem nunca o provar”. “O tribunal certamente vai dar-nos razão”, referiu ainda. E reforça: “O município vai ganhar esta ação”.

Por fim, o vereador do PS voltou a atacar as declarações de Carlos Moedas ao dizer que houve aproveitamento político por “estarmos numa altura de campanha eleitoral”. “Quiseram fazer um número de um tema que não é tema”, acusou.

CNPD aponta o dedo a Medina e contraria Costa

Em mais de 90 páginas de deliberação, a CPN aponta diretamente o dedo a Fernando Medina e contraria a tese apresentada então por António Costa. Na altura, o primeiro-ministro, também ele colocado em causa neste processo, desvalorizou o caso e responsabilizou o governo de Pedro Passos Coelho por ter desenhado uma lei errada para concretizar a extinção dos governos civis e que conduziu a uma má transferência da competência para as câmaras municipais.

Ora, a CNPD discorda em absoluto da interpretação do primeiro-ministro. “Não tem qualquer suporte nos demais elementos interpretativos, máxime, no elemento teleológico e no elemento lógico”, escreve.

A administração de Fernando Medina é a principal visada. Para a CNPD, o “Município de Lisboa agiu de forma livre, deliberada e consciente” na transmissão destes dados, “sem que tal tivesse espoletado a mínima reação crítica“, no que era um “comportamento comummente conhecido e aceite pela organização”.

Mais: as correções entretanto feitas “foram insuficientes e adensam as dúvidas sobre a genuína vontade de alterar os procedimentos “. Fernando Medina, de resto, é pessoalmente visado. “O presidente da Câmara Municipal de Lisboa preferiu justificar juridicamente a sua incompetência para aplicar [a lei] sem cuidar de caucionar o não envio ou disponibilização da informação pessoal.”

Em vários momentos da defesa apresentada, a Câmara Municipal tenta justificar o que aconteceu ou, pelo menos, diminuir o valor da multa a pagar. A determinada altura, chega a pedir que a coima fosse reduzida atendendo à situação financeira da autarquia na ressaca pandémica. A CNPD não só não aceitou, como explicou que se não fosse o contexto em que a cidade e o país vivem e a multa teria sido maior.

De resto, e apesar do pronto pedido de desculpa de Medina, a autarquia tentou ainda convencer o CNPD de duas teses: a informação sobre os autores da manifestação estava igualmente nas redes sociais (o que atenuava a gravidade da situação); e, em segundo lugar, tenta responsabilizar os “funcionários que agiram de forma contrária” e desrespeitaram um despacho interno com a data de 2013 — um argumento já na altura esgrimido por António Costa e vários dirigentes socialistas.

A CNDP discordou de ambos os argumentos e foi particularmente dura a desconstruir o segundo. “[Fica evidente] a clara demonstração de uma indiferença pela obrigação legal inscrita naquele diploma, bem como pelas obrigações prescritas pelo RGPD, esta postura transparece um evidente desacerto por parte de quem dirige os serviços. O que é bem revelador da cultura organizativa do arguido e do seu défice de organização, naturalmente apenas imputável ao próprio (…) Não foi incumprido por um funcionário, mas por todos os elementos do Gabinete da Apoio à Presidência da CML”, remata o organismo.

*Notícia atualizada às 17h23 com conclusões da deliberação da CNPD