“Eu não sou como os outros, eu sou feliz”, entoa um homem ao rodopiar pela sala, depois de agarrado e lançado à sua sorte por um ser misterioso. O primeiro é o narrador (Christian Luján, barítono), o segundo é o homem dos sonhos (Catarina Molder, soprano), que dá o nome à ópera que tem música e libreto de António Chagas Rosa a partir de um conto homónimo de Mário de Sá-Carneiro.
Estamos numa sala do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. É aqui que se ensaia a produção da Ópera do Castelo para ver no São Luiz a partir desta sexta-feira, 4 de fevereiro, até domingo, dia 6. Não há adereços, a não ser algumas mesas, cadeiras, copos e uma bandeja. “Vamos ter umas telas grandes em cena com imagens modernistas dos anos 20”, explica Miguel Loureiro, o encenador, para contextualizar as caixas de madeira, vazias, que dois figurantes seguram nas mãos e que, para já, são verdadeiras telas em branco onde a imaginação pode pintar qualquer coisa.
Sonho ou realidade, loucura ou sanidade, a condição humana e a constante insatisfação ocupam as sete cenas de “O Homem dos Sonhos” e atormentam o narrador. No centro de tudo está um homem (neste caso uma mulher, o alter-ego de Mário de Sá Carneiro), que atinge a felicidade suprema ao viver tudo o que sonhara.
Para se perceber o caminho até aqui, ao dia da estreia, é preciso recuar sete anos. “Há muito que conheço o trabalho do António Chagas Rosa, sou admiradora da obra e da ópera e há muitos anos que queria produzir uma ópera dele ou fazer uma ópera com ele. Desde o início que me falou de um conto do Mário de Sá-Carneiro. O António teve de fazer alguns cortes, selecionou os sonhos do ‘Homem dos Sonhos’ e chegámos ao número sete”, recorda ao Observador Catarina Molder.
[um teaser para “O Homem dos Sonhos”:]
“Foi um processo moroso porque estamos num país onde quase não há produção de ópera, a maioria dos teatros não estão habituados a fazer coprodução, olham para a ópera de forma desconfiada. Quisemos muito estrear no centenário de Mário de Sá-Carneiro, em 2016, porque ele foi um revolucionário nos seus contos e nas suas personagens.”
Não aconteceu nessa altura e não aconteceria nos anos seguintes, cortesia da pandemia. No entanto, o limbo que parecia infinito acabou por dar mais tempo a António Chagas Rosa para aperfeiçoar o projeto. “Em 2020 fiz o esboço de canto e piano em seis meses e a instrumentalização em mais seis meses. São 400 páginas A3, tirando aquelas que rasguei e não aproveitei”, diz o compositor.
Na sala, Miguel Loureiro, sempre de papel e lápis na mão, puxa o braço de um figurante, mostrando-lhe exatamente o local onde deve estar colocado. “Vão trocando a bandeja, sem parar”, explica aos dois homens que interpretam empregados de mesa e cuja função é circular pela sala quase ininterruptamente. Estamos num café e também isso influenciou a música criada para “O Homem dos Sonhos”. “Pelo menos da minha parte houve a vontade de convocar uma orquestra de café. Pensei num grupo de instrumentistas que sugerisse uma orquestra de café, até com acordeão, contrabaixo e tuba, um som de café”, conta António Chagas Rosa.
Para já, é apenas um piano de cauda, ao fundo da sala, à esquerda, a comandar as melodias. A uma semana e pouco da estreia, este é o primeiro ensaio com o maestro. Jan Wierzba, nascido na Polónia mas com sotaque do Porto, onde cresceu, está quase sempre de pé. Nas mãos tem um portátil com a pauta. Quando é necessário, vai parando Catarina Molder ou Christian Luján para guiá-los para o tom correto. De vez em quando troca ideias com António Chagas Rosa, sentado numa das cadeiras da plateia, à direita. Quase sempre em silêncio, toma notas. O pé nunca pára de acompanhar o ritmo.
“Maldita vida, vida maldita”, diz o narrador logo no início do ensaio, que corresponde à primeira cena. As dicotomias e a confusão veem-se na sua cara e ouvem-se na voz. De uma porta do lado direito surge uma mulher de cabelos pretos e sorriso enigmático. Encaminha-se devagar, como se pairasse no espaço e se apropriasse a pouco e pouco de todas as atenções.
“Antes de começarmos os ensaios, o Christian perguntava-me: ‘já pensaste muito na tua personagem, o que é que achas que o Miguel nos vai propor?’ É engraçado mas eu não pensei que tinha de ser assim ou assado. Ao estudar as linhas de canto d’’O Homem dos Sonhos’, a música forneceu-me quase tudo sob o ponto de vista cénico”, analisa Catarina Molder, que tem igualmente a pasta de direção artística do espetáculo.
Para a personagem inspirou-se em filmes, livros e pinturas. “É um papel de soprano mas tem zonas muito graves. A música está repleta de valsas desconjuntadas. Uma pessoa imagina máquinas, bonecos sem corda, grotesco, decadência, desespero. Muitas vezes o homem dos sonhos começa a debitar algo em que acredita e acaba a duvidar, a rastejar, porque já não acredita em nada, aquilo já nem o convence a ele.”
Essa luta constante de emoções sente-se no ensaio e o escalar da tensão só é interrompido porque há constantemente pausas necessárias para fazer acertos. “Vou fazer a cena [deitada] em cima da mesa para te ver”, diz Catarina Molder ao encenador. Ainda há meio minuto caíra no chão, como se estivesse desmaiada, e começara a cantar.
O que se prepara nesta sala tem, para já, três datas em Lisboa. Segue para o Teatro Viriato, em Viseu, e depois para o Teatro Municipal da Guarda, onde “O Homem dos Sonhos” será filmado para mais tarde ser exibido na RTP2. “O espetáculo fica montado e podemos a qualquer altura ter mais datas, mas não deixa de ser ingrato. É um trabalho gigantesco, vemos a pontinha do icebergue e passados três dias desmontamos tudo. É uma perda”, lamenta António Chagas Rosa.
Para assegurar a estreia valeu a teimosia de Catarina Molder. “Sou muito casmurra e perseverante mas às vezes tenho de deixar pousar.No entanto, durante estes sete anos, ele [“O Homem dos Sonhos”] nunca me saiu da cabeça. A partir do momento em que marcamos a data no São Luiz as coisas começaram a acontecer.
Ultrapassadas as barreiras dos apoios e do financiamento, há um perigo, a Covid-19, que continua a pairar até ao minuto em que a cortina sobe.
“Tenho metade da equipa doente, felizmente não são as pessoas de palco, mas somos uma estrutura independente, não temos rede. Estou habituada a ter tantas portas fechadas que eu invento uma janela em cima de mim para não sufocar. Fico de pé até me espezinharem. Até nos mandarem para casa, vamos aguentar”, garante a soprano.
“Arrisquei aqui a minha energia e o meu dinheiro, há muita coisa em jogo. Tive o mecenato da Caixa Cultura, da CGD. Se não, não tinha conseguido montar a ópera, porque dois produtores caíram. Mas, lá está, este homem dos sonhos está a aguentar-se, se calhar quer mesmo nascer.”
“O Homem dos Sonhos” estará em cena na Sala Luís Miguel Cintra do Teatro São Luiz entre 4 e 6 de fevereiro. As sessões acontecem às 20 horas (sexta-feira e sábado) e às 17h30 (no domingo). Os bilhetes custam entre 12€ e 15€. Estão disponíveis nas bilheteiras online ou no local.