No início desta nova versão de “Morte no Nilo”, de e com Kenneth Branagh, Poirot vê um sujeito a largar um papagaio de papel na Grande Pirâmide, fica indignado e dirige-se-lhe, gritando que o que ele está a fazer é um atentado ao património e um crime cultural. Branagh não deve ter reparado, mas estava a embutir em “Morte no Nilo” a crítica ao seu próprio filme. É que depois de ter dado cabo de “Um Crime no Expresso no Oriente” no seu “remake” de 2017, o realizador e ator atenta agora duplamente contra o património da literatura policial que é “Morte no Nilo”, e a personagem maior da cultura popular que é Hercule Poirot. O filme é um crime de lesa-Agatha Christie, com Poirot a reboque para a desgraça.
Qualquer semelhança entre esta nova adaptação ao cinema do livro com a (muito boa) de John Guillermin, rodada em 1978 com Peter Ustinov como Poirot, e a televisiva com David Suchet no detetive belga, é um puro acaso. Kenneth Branagh e o argumentista Michael Green pura e simplesmente desfiguraram até ao insulto e ao absurdo a obra de Agatha Christie, deturpando o enredo, eliminando ou descaracterizando algumas das personagens, inventando outras novas e curvando-se perante a tirania politicamente correta que dita a lei em Hollywood e exige quotas étnicas e de minorias em tudo, mesmo que retroativamente. O que, no caso de “Morte no Nilo”, que se já de si tem muito pouca noção da época em que se passa, dá origem a anacronismos ridículos (para já não falar no barco e nos uniformes da tripulação, clara e descuidadamente modernos).
[Veja o “trailer” de “Morte no Nilo”:]
A autora de “O Assassinato de Roger Ackroyd” deve estar a dar saltos no túmulo com o que lhe fizeram nesta fita à personagem de Salome Otterbourne, a autora de romances “ousados” (e que baseou na figura real da escritora Elinor Glyn) e à filha Rosalie, ou à milionária cleptómana Miss Van Schuyler e à sua sofredora acompanhante Bowers. Mas pior ainda é a lamentável “desconstrução” de Hercule Poirot, que Kenneth Branagh nem sequer se dá ao trabalho de compor minimamente, do ponto vista físico ou psicológico: limita-se a pôr um bigode postiço e a ter um sotaque francês pateta, saído de um “sketch” dos Monty Python.
Este Poirot é adulterado e menorizado não só no seu aspeto como também intelectual, emocionalmente e no comportamento (anda de arma de mão e corre atrás de suspeitos como se fosse um herói de ação e não um homem cerebral), e é metido num descabelado subenredo romântico, que o faz sacrificar a sua mais distinta característica física (e cuja origem é aqui pretensamente justificada, num prólogo passado na I Guerra Mundial que não passa de uma invenção abusiva do argumentista). Digamos apenas que o plano final de “Morte no Nilo” é suficiente para Agatha Christie vir assombrar Kenneth Branagh todas as noites, até ao dia em que ele desaparecer deste mundo. E pôr os admiradores da “rainha do crime” a desejarem que seja mumificado vivo.
[Veja uma cena do filme:]
O elenco de “Morte no Nilo” é uma mistura de podões, canastronas (Gal Gadot é tão bonita e sensual como péssima atriz, mal abre a boca dá vontade de rir) quase todos jovens e desconhecidos, e de caras conhecidas a fazerem figuras tristes (veja-se o par cómico Dawn French e Jennifer Saunders, metidas à martelada nas personagens que foram de Bette Davis e Maggie Smith na fita original de Guillermin, até mete dó). A realização abaixo de robótica piora tudo ainda mais e os efeitos digitais simulam muito mal que o filme foi integralmente rodado no Egito, quando há ali mais “software” do que realidade. Esta é uma das mais deploráveis, espúrias e toscas adaptações de um livro de Agatha Christie ao cinema. Atirem-na ao Nilo e chamem os crocodilos.