Inês Lourenço parecia um ventríloquo a declamar os seus próprios poemas, mas a voz era a do moderador da mesa, Renato Filipe Cardoso. A poeta portuense sabia de cor os vários poemas que foram lidos a propósito do lançamento, na sexta-feira à noite, da sua antologia poética, Dois Cimbalinos Escaldados – Vivências Portuenses, no contexto do festival literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. Trata-se de uma edição da Texto Sentido, uma pequena editora de poesia do Porto dirigida por Filipe Cardoso, integrada na coleção “Solidão Sincronizada”, que se caracteriza também por uma impressão bastante cuidada: um pequeno recorte na capa para se ver o logótipo da coleção a espreitar da orelha do livro; os cortes das folhas pintadas de laranja; a capa, a lombada e a contracapa a serem ilustradas por uma fotografia só, a preto e branco, a mostrar o casario identitário do Porto.

“Não sei, meu amigo, o que
irradiava mais calor, se
a chávena escaldada, se
o cimbalino fervente, se
as conversas sobre livros de poesia
que nesse tempo ainda
acreditávamos ser a maior
razão”

Assim começa o primeiro poema da antologia desta poeta de 79 anos, nascida e criada no Porto. Com uma licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, retomada e concluída depois de casada e com os dois filhos pequenos, Inês Lourenço explicou durante o lançamento a origem da palavra “cimbalino”, em vez de “bica”. O termo deve-se a uma marca italiana de máquinas profissionais de café expresso, La Cimbali.

A antologia encontra-se organizada em cinco blocos temáticos: os cafés, “Dois Cimbalinos Escaldados”; “Dedicatórias, a artistas do Porto”; “A Magnífica Destreza”, animais com os quais de alguma forma se relaciona; “Ritmos Interiores”, ligados essencialmente às suas memórias de infância; e “Lugares”. “Estes poemas já foram publicados em diversos livros, são poemas que têm a ver com a identidade portuense”, explica Inês Lourenço ao Observador. “Há referências explícitas – como o jardim de São Lázaro ou o mar da Foz – e implícitas – quando falo da infância, do que sentia quando era criança.”

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A capa de "Dois Cimbalinos Escaldados", de Inês Lourenço (Texto Sentido)

Os pais de Inês Lourenço morreram ambos no espaço de meses, tinha ela 20 anos. Os diversos lugares da cidade tornaram-se seus parentes. “Esse sentimento de pertença que uma pessoa tem em relação à família, eu desenvolvi em relação à cidade”, conta-nos a poeta. “Eu sei que saía de casa e dizia ‘está aqui, na mesma, esta esquina; está aqui, na mesma, este portão’. Era como se fossem rostos de pessoas conhecidas.”

Na apresentação, Inês Lourenço citou o psiquiatra e poeta António Barbedo, que se referia ao Porto como tendo uma “luz de estanho e violetas”. Os poemas de Inês Lourenço estão repletos dessas luzes e sombras, de cheiros, de cores, que criam uma atmosfera muito profunda do que é a cidade do Porto. Nasceu na Rua de Camões, freguesia de Santo Ildefonso. Mudou-se para a Travessa Antero de Quental, um pouco acima. Só poetas. Mais tarde, já casada, foi viver para a Rua de Santa Helena, onde ainda mora. “A minha infância/ cheira a soalho esfregado a piaçaba/ aos chocolates do meu pai aos Domingos/ à camisa de noite de flanela/ da minha mãe”, começa por dizer o poema “Rua de Camões”.

“Eu tinha quatro anos e lembro-me de a minha mãe me levar a um jardim infantil que havia na Cordoaria”, descreve Inês Lourenço. “Tinha um lago com patos, que agora não existe.” Chegou a ver lá espectáculos de Robertos, espectáculos de marionetas. Era um jardim romântico que, aquando da Porto 2001, foi transformado num largo.

Os cafés começou a frequentá-los andava na faculdade. Escreve Inês Lourenço no seu poema intitulado Café Estrela d’Ouro:

“Na Rua da Fábrica, perto
de livrarias e simpáticos alfarrabistas,
redigíamos panfes pela libertação
da mulher, devidamente pastoreadas
por um pequeno partido de esquerda, onde
só nos podíamos libertar
ao lado dos homens”

“Quando eu era miúda, as mulheres não podiam entrar nos cafés porque parecia mal”, contextualiza. “Ias com o pai ou com o marido. Nem ao cinema ias sozinha, porque ias para o engate. Aos sábados à tarde, já eu era casada [casou-se em ‘65], as mulheres não andavam na rua às compras sem o marido ao lado.”

Começou a escrever muito cedo, logo em criança. Ainda guarda cadernos dessa altura. Na escola, destacava-se sempre pelas suas composições. Na apresentação, tinha referido lidar muito mal com a autoridade. Assume-se rebelde. Diz a primeira de duas estrofes do seu poema “Desalinho”:

“Nenhum destes poemas
fará parte de um livro
adoptado nas escolas. Há
muito tempo que não escrevo
azul mar e barcos ou outras
palavras para alívio de almas
homéricas”

“No secundário, decorei o Cântico Negro do José Régio, gostava muito do José Régio, era muito revolucionário, naquela altura”, diz-nos. “Gostaria de ter ido para Portalegre só para ser aluna do José Régio. ‘Não, não vou por aí! Só vou por onde/ Me levam meus próprios passos…’” Inês Lourenço conta que, numa das festas da escola, a professora ficou chocada com o facto de a aluna querer declamar esse texto, estávamos em pleno Estado Novo, porque tinha uma parte que dizia:

“Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo”

Aos 35 anos, foi parar ao hospital de São João, onde foi operada devido a um descolamento da retina. O médico que a operou, a quem mostrou um dos seus caderninhos, incitou-a a ir para a faculdade terminar o curso. E foi aí que começou a conviver com poetas. Alguns estão referidos, na antologia, no capítulo Dedicatórias. “Tenho um poema dedicado ao Egito Gonçalves, um poeta do Porto. Ele tinha uma editora chamada Limiar. Foi ele quem me publicou o livro Solistas [1994]”, conta. “Conheci o Eugénio. Dei-me sempre muito bem com ele, ele gostava do que eu escrevia.” São vários os poemas dedicados na antologia a Eugénio de Andrade.

Em 1987, fundou e editou uma revista de poesia, a Hífen, da qual saíram 13 números. “A Hífen deu-me uma grande convivência com os poetas. Publiquei lá o António Ramos Rosa, Joaquim Manuel Magalhães, Luís Miguel Nava, Nuno Júdice”, enumera Inês Lourenço. Contactavam-se por correspondência. “Eu tinha um apartado. Quando fazia um número, fazia um texto-convite e mandava aos poetas. E eles respondiam-me. Ainda tenho em casa essa correspondência toda.”