“O senhor deputado Rui Livre… Rui Tavares, peço desculpa (…) pediu para utilizar os 5 segundos que tem a menos, para manter a proporcionalidade no incumprimento do regimento vou dar-lhe a palavra para duas frases”. Augusto Santos Silva dava, assim, a palavra ao deputado único do Livre perante a estupefação de outras bancadas, como as do PCP, BE e PSD que se fizeram ouvir no plenário sobre o tratamento desigual a Rui Tavares, o novo preferido do PS e, por isso, alvo frequente das restantes bancadas neste debate do Orçamento do Estado.

Não foi o único episódio onde o deputado do Livre foi apontado como beneficiado — na noite anterior, mais uma questão regimental tinha posto o PS ao lado do deputado — e, no caso, tratou-se de uma questão simples, de tempo que lhe foi concedido para falar fora da grelha de tempos onde o deputado do Livre já estava em negativos.

A benesse dada pelo presidente da Assembleia da República foi logo apontada pelo PCP, onde a líder parlamentar Paula Santos classificou o episódio de “gravíssimo”, com o BE mesmo ali ao lado em gestos de concordância total com os comunistas. E do outro lado do hemiciclo, o líder parlamentar do PSD, Paulo Mota Pinto, também se juntou ao repúdio dizendo que “não há direito à igualdade no ilícito”. O caso não era propriamente de bradar aos guardiões das regras parlamentares, mas a picardia da esquerda face a Rui Tavares já vinha sendo notada de trás.

O deputado tem visto várias das propostas de alteração que fez ao OE aprovadas pela maioria socialista e isso coloca-o como um novo parceiro do PS absoluto. A sintonia valeu um comentário irónico de André Ventura, aproveitou para colar o partido, assim como um dos seus partidos concorrentes, a Iniciativa Liberal, ao Governo, tentando assim reclamar para si o lugar de opositor: “Interessa dar a mão aos novos parceiros”, disse, dirigindo-se ao Governo e deixando claro quem colocava no saco desses novos parceiros – no lugar de Bloco de Esquerda e PCP ficam agora Livre e IL.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O subsídio alargado (e muito negociado) com o Governo

A proposta para alargar o subsídio de desemprego a novas situações – vítimas de violência doméstica à cabeça – era uma das bandeiras principais do Livre, mas tinha um problema: graças às negociações demoradas com o Governo, o partido entregou a proposta alterada já durante esta semana de votações. Ora, em princípio, os partidos só podem, durante este período, fazer entrar alterações de pormenor, e não de fundo – mas como o próprio PS já tinha, na terça-feira, conseguido contrariar esse princípio e, contra a oposição, alterar substancialmente uma proposta, desta vez não houve argumentos para travar a proposta de Rui Tavares.

Mesmo assim, o deputado quis que ela fosse discutida e votada de novo esta quarta-feira de manhã, depois de já ter sido aprovada na terça-feira pelos deputados da Comissão de Orçamento e Finanças. Por um lado, para não deixar dúvidas quanto à legitimidade da proposta; por outro, porque é um hábito dos partidos para capitalizarem as suas bandeiras e lhes atribuírem um destaque maior.

Ora foi isso mesmo que Rui Tavares fez, voltando a levar o alargamento do subsídio de desemprego a votos. Para quem estivesse atento à substituição do texto inicial, percebia-se as alterações que o Livre teve de fazer para convencer o Governo a dar luz verde à proposta: ficou, sim, aprovada a ideia de atribuir subsídio de desemprego às vítimas de violência doméstica; quanto aos outros pontos, ficaram a meio caminho.

Em vez de ser atribuído o valor do subsídio de desemprego a quem tiver um cônjuge que vai trabalhar para zonas de baixa densidade e tiver de se despedir, são criadas majorações no âmbito do programa “Emprego Interior +”; quanto a atribuir o subsídio a quem apresentar um plano para aumentar as suas qualificações (ir fazer mestrado ou doutoramento, por exemplo), a solução encontrada foi criar um programa de licenças para formação que “facilite a elevação de qualificações e de requalificação das pessoas ao longo da vida”, depois de ouvida a concertação social.

A harmonia entre Livre e PS ficou mais uma vez evidente enquanto a proposta era discutida, com o secretário de Estado da Segurança Social, Gabriel Bastos, a garantir a Tavares que “acompanha e compreende as suas preocupações” e a frisar amigavelmente que seria adequado aproveitar os acordos e programas existentes e já criados pelo Executivo – “para corresponder às intenções da proposta apresentada pelo Livre”.

E já depois de o PAN atacar a proposta, lembrando que o Governo ainda não regulamentou uma licença para reestruturação da vida familiar para vítimas de violência doméstica, que seria mais abrangente, e que ficou aprovada em 2020 por proposta do PAN, o PS veio frisar de novo que a medida do Livre “pode ser um apoio importante”.

Mas, nesta terça-feira de manhã, nem só o Livre colheu propostas de alteração aprovadas. Também a Iniciativa Liberal conseguiu resgatar uma que tinha sido chumbada pelo PS na comissão parlamentar de Orçamento e Finanças da noite anterior, depois de a avocar para ser novamente votada mas agora em plenário. O partido queria que quem se candidata a bolsas do Ensino Superior pudesse saber antes da colocação se terá ou não direito à bolsa. Pedia um ajuste de calendário, mas também que a regra fosse aplicada já ao ano letivo que começa em setembro.

Ora, o PS só concordava com a antecipação de prazos, com o próprio secretário de Estado do Ensino Superior Pedro Teixeira a assumi-lo durante o debate. No momento da votação, o PS pediu para votar a proposta em dois momento e acabou por aprovar a parte em que antecipava o calendário, evitando que isso comece já em 2022/2023. A mudança neste voto fez com que a proposta da IL tivesse passado por unanimidade, o que resultou no abraço entre os deputados da bancada Carlos Guimarães Pinto e Carla Castro.

Impostos e uma “embrulhada jurídica”

O dia ficou marcado por uma série de discussões sobre impostos, habitação e Saúde que, na prática, não foram mais do que becos sem saída.

Nos impostos e particularmente durante a discussão do IRS, o Governo ouviu repetidas críticas ao facto de não atualizar os escalões do IRS à taxa de inflação (um “escândalo”, classificou o PSD), mas focou-se sempre em lembrar o desdobramento de escalões, que trará “um alívio fiscal de 500 milhões de euros às famílias portuguesas” – sem contar com o corte no poder de compra que a inflação provoca, e que compromete o tal alívio, foi lembrando a oposição, sem grande efeito.

Fora o IRS, a direita insistiu na baixa do IVA da restauração e a esquerda no IVA da eletricidade, mas em nenhum dos tópicos se prevê que haja sucesso. Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, entrou em discussões prolongadas com o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, por causa da falta de pagamento da EDP do imposto de selo pelas barragens que vendeu, assim como do IMI – e o governante disse concordar que todos os contribuintes devem pagar impostos mas apenas acrescentou que o processo está a “correr” e que o Executivo espera vê-lo resolvido.

Neste ponto, uma nota de atualidade: André Ventura lembrou a Mendonça Mendes que, como noticiou esta quarta-feira o Jornal de Negócios, o Tribunal de Justiça da União Europeia deu razão a uma gasolineira, considerando a contribuição rodoviária que têm de pagar ilegal. O governante ainda assegurou que “a nenhum português passa pela cabeça que alguma gasolineira vá pedir ao Estado português para lhe devolver a contribuição rodoviária”, mas não convenceu o deputado: “É o mesmo que perguntar se o Parlamento existe enquanto estamos aqui todos”. E previu que isto vá criar uma “embrulhada jurídica” para o Executivo.

Na Saúde, a habitual discussão entre destinar recursos ao público e ao privado prolongou-se. Entre uma direita que viu propostas como a dos médicos assistentes para quem não tem médico de família ou os vales-cirurgia para quem está em lista de espera chumbadas (neste caso, ambas do PSD), e uma esquerda que acusa o Governo de não apostar a sério no SNS e desviar dinheiro para os privados, o PS ficou sozinho. Mas, tendo maioria, isso não foi problema: sem alterações, o Orçamento seguiu.

Por último, mais uma chuva de críticas na questão do acesso à Habitação, que o próprio PS admitiu ser uma espécie de elefante na sala que continua por resolver, sobretudo para os mais jovens. Ainda assim, não se antevê melhor destino para as propostas da oposição (com a direita a insistir na isenção do IMT na compra para a primeira casa).