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Porto, cidade triste e alegre

Este artigo tem mais de 1 ano

O bom alfarrabista feito editor In-Libris não conseguiu tirar o melhor partido do impactante material fotográfico de Bernardino Pires a que teve acesso, segurando apenas o trunfo da sua novidade.

A geografia das imagens de Pires está bem longe de circunscrever-se à mais velha urbe portuense, e socialmente aos pobres que nela viviam
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A geografia das imagens de Pires está bem longe de circunscrever-se à mais velha urbe portuense, e socialmente aos pobres que nela viviam

Paulo Gaspar Ferreira

A geografia das imagens de Pires está bem longe de circunscrever-se à mais velha urbe portuense, e socialmente aos pobres que nela viviam

Paulo Gaspar Ferreira

Ainda que Manuel Valente Alves e Duarte Belo, nas suas contribuições, se refiram ao famoso foto-livro de Victor Palla e Costa Martins, esta edição-escolha do portefólio do portuense Bernardino Pires (1901-77) nada tem a ver com o livro-em-fascículos de 1959. Apesar da coincidência temporal ou social, é mesmo toda outra coisa, e ainda que a revelação deste arquivo fotográfico represente uma surpreendente novidade documental comparável à do açoriano micaelense Laudalino da Ponte Pacheco (Araucária Edições, 2021, 174 pp.), na verdade o presente livro afasta-se muitíssimo quer da singularíssima paginação “cinematográfica” de Palla & Martins, quer do design contemporâneo do micaelense-parisiense premiado José Albergaria. E é uma pena, porque deste modo o bom alfarrabista feito editor In-Libris não conseguiu tirar o melhor partido possível do impactante material a que teve acesso, segurando apenas o trunfo da sua novidade.

O editor — bem sei — teve o mérito e a ousadia de convidar gente conhecida do Porto e não só para escolher e comentar 42 das c. 190 destas imagens desconhecidas, saídas dum fundo com mais de 10 mil delas e praticamente inédito (deste modo alargando ao máximo o espectro de leituras desta obra fotográfica), mas o design demasiado convencional e sem rasgo enfraquece irremediavelmente o livro. Ficamos rapidamente com a impressão de que se poderia ter feito muito melhor, desde logo preferindo um formato mais pequeno. Depois do livro de Teresa Siza O Porto e os seus fotógrafos, com design de Andrew Howard (336 pp.), produzido no quadro de Porto 2001 Capital Europeia da Cultura (e que este livreiro-editor não pode desconhecer), ou do recente Manoel de Oliveira fotógrafo (Fundação de Serralves, 2020, com design do atelier R2, 352 pp.), baixar tanto a fasquia visual é erro grosseiro que até na capa se denuncia, desde o primeiro vislumbre. Qualquer uma das imagens que mostramos em galeria faria aí melhor figura, para não falar daquela do rapazinho feliz que acabou de lançar o seu pião, ainda no ar… (p. 177 — sugerindo a José Valle de Figueiredo estes versos: “Vai a criança pelo caminho | com o pião lançado à vida, | como verso de esperança | a crescer num poema | que se deu ao dia | com a mais clara poesia”, p. 248).

Título: “A Cidade do Porto na obra do fotógrafo Bernardino Pires”
Coordenação editorial: Maria Luísa Malato
Prefácios: Hermano Marques, Mário Augusto e Maria Luísa Malato
Design: Paulo Gaspar Ferreira
Editor: In-Libris
Páginas: 288

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De Bernardino Pires pouco se sabe, além de ter sido dono do Bazar Estrela, na Rua de Santo Ildefonso, e de ter sido bombeiro, agente de seguros e ilustrador. Praticante da fotografia, foi um dos fundadores da Associação Fotográfica do Porto — e, depois, da Tertúlia 4+ — e um dos carolas desta arte que gravitavam na loja da Foto Sport e no Café Majestic e aos sábados de manhã iam em grupo, de máquina a tiracolo, à captura de motivos na pitoresca Ribeira, um grupo em que estava “um guarda-livros que gostava de fotografar” (a expressão é de José-Matos Cruz), nada menos do que António Mendes, celebrado director de fotografia dos primeiros filmes de Manoel de Oliveira, Douro Faina Fluvial e Aniki-Bobó.

Todavia, a geografia das imagens de Pires está bem longe de circunscrever-se à mais velha urbe portuense, e socialmente aos pobres que nela viviam, ainda que algumas das suas fotografias de crianças à solta na rua remetam para os catraios do filme de 1942, e outras cenas do quotidiano caracterizem bem essa parte da cidade: homem que corta as unhas dos pés à soleira da porta (p. 87), jovem que passa lustro à sua nova motocicleta cromada (p. 166), vendedora de frescos com balança (p. 62), mulheres que conversam enquanto grelham peixe no meio da rua (p. 101), as Alminhas da Ponte (p. 83), que Germano Silva comentará adiante como “lembrança fresca do tempo velho” (p. 237).

O fotógrafo Bernardino Pires foi um dos fundadores da Associação Fotográfica do Porto, um dos que aos sábados de manhã iam em grupo, de máquina a tiracolo, à captura de motivos na pitoresca Ribeira

Paulo Gaspar Ferreira

No bairro da Sé — onde já muito se viveu e morreu —, a austera monumentalidade do templo contrasta com a informalidade dum mercado de rua em contraponto (pp. 69, 82), de roupa a secar ao sol (pp. 154, 64, 208) ou da cerzideira descalça que remenda roupa velha sentada fora de casa (p. 85). A ponte D. Luiz e a estação ferroviária de São Bento são vistas de todos os ângulos (admiráveis os das pp. 211 e 187-88), tirando partido das suas geometrias e jogos de luz. O árduo trabalho de descarga portuária por mulheres — que ninguém quis comentar (Nuno Júdice preferiu escrever sobre raparigas que se catam piolhos: foto p. 70, texto p. 261) — tem na p. 199 uma fotografia de antologia, as ilhas ou vilas operárias (pp. 73, 167) não foram esquecidas, sequer a ruralidade que cruza a cidade com os seus rebanhos (pp. 168-69), fardos de cargueja à cabeça (p. 102), bois cornudos (pp. 74-75), a jovem grávida da p. 153 («o menino gerado na romaria», como sugere Mário Cláudio) ou aquela outra que, encostada a um painel de azulejos de cena rural de Jorge Colaço, parece perscrutar a cidade grande onde mal acaba de chegar, com alcofa de verga e um saco de pano (p. 190). O encontro entre cidade e campo também está reflectido na fotografia da p. 103, que enquadra dianteira dum automóvel, mulher que chega com fardo à cabeça e família reunida junto a homem se faz barbear por outro debaixo duma árvore (p. 103). Já a saga marítima e piscatória, da Cantareira a Matosinhos, sugeriu a Pires um portefólio quase cinemático, de que destacaria sem hesitação as fotografias da pp. 125 e 130. A imagem do pescador de costas que pinta a proa do seu barco coincide — quase por absurdo — com uma das hoje mais conhecidas fotografias de Gérard Castello-Lopes (1925-2011)…

Mas também o Porto que se modernizou, com enormes letreiros comerciais luminosos (pp. 45, 46, 50), publicidade a teatro numa furgonete que roda a cidade (p. 36), cafés, esplanadas, feiras do livro ao ar livre (Pedro Mexia assina uma das melhores colaborações do livro: o poema “Um hábito”, p. 268), lunaparques de ocasião (pp. 56-57), e no extremo ocidental as praias já oceânicas, com vendedores de chapéus ou vimes e fotógrafos lambe-lambe ambulantes (p. 119, simplesmente admirável), os apreciados barquilhos de canela (p. 115) e as senhoras que não ousam sair da sombra das barracas de lona, mal arriscam molhar o pé ou fazem o seu croché (pp. 114, 117, 116). E sobretudo, a Ponte da Arrábida, cuja construção (1963) Bernardino acompanhou em diferentes momentos, e que é, para o geógrafo Álvaro Domingues, “o anúncio dos novos tempos que finalmente chegavam. Da cidade longamente confinada dentro das muralhas junto ao rio, evoluía-se para a urbanização de grande escala e para uma outra geografia económica” (p. 218). O fotógrafo Duarte Belo também escolheu uma fotografia da construção da ponte projectada por Edgar Cardoso, aquela da p. 241, em que um arco em betão é içado. Nessa imagem, “as pessoas, o fotógrafo, olham o fim do seu próprio tempo. […] A ponte da Arrábida vai introduzir a dimensão de aceleração do tempo, então praticamente inexistente […] representa o fim de uma época, representa o crescimento da cidade para áreas de quintas que marginavam o velho burgo” (pp. 231-32). Na outra banda, solitário, um guarda republicano tudo vigia, como representante dum tempo opressivo (p. 79).

Enfim, “um Porto que já não existe, sem ter desaparecido”, como escreve o jornalista e escritor Paulo Moura, que contudo acrescenta: “Em Lisboa, as coisas secam. No Porto, apodrecem e renascem” (p. 263). Ora, não exageremos…

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