A viagem pela vida e obra de Calouste Sarkis Gulbenkian, no podcast Only the Best, uma parceria entre a Rádio Observador e o Museu da Fundação Calouste Gulbenkian, leva-nos, desta vez, a explorar a paixão do filantropo arménio pelos manuscritos, também eles obras de arte que englobam o espólio da coleção que serve de base ao Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

Como habitualmente, Rui Ramos, anfitrião do podcast e historiador, conduz-nos entre aventuras e histórias protagonizadas por Gulbenkian, devidamente contextualizadas por João Carvalho Dias, diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian, sendo que neste episódio vamos explorar outra faceta de Calouste enquanto colecionador.

“Se nas anteriores sessões falámos de moedas, de pinturas e de esculturas, desta vez o tema são os manuscritos”, sublinha Rui Ramos, que, continua, “eram cópias feitas à mão em suportes que podiam ir do papel ao pergaminho, e a forma como circulavam os textos e os livros antes de a imprensa ter começado a ser usada no século XV”. Muitos desses manuscritos “não eram apenas cópias singelas do texto original, mas verdadeiras obras de arte, seja pela caligrafia, ornamentação gráfica ou ilustrações (iluminuras) que acompanhavam o texto, assim como pela sua encadernação”, refere o anfitrião do podcast Only the Best, acrescentando o facto de “na Europa da Idade Média existirem oficinas de copistas e ilustradores a trabalhar nessas edições, por exemplo, em mosteiros, e a tentar produzir manuscritos ricamente elaborados e encadernados”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Livros e idiossincrasias

Toda essa conjuntura torna percetível a atração de vários colecionadores face aos manuscritos, fosse pelo interesse histórico ou a sua arte, e Gulbenkian não foge à regra. Mas, “desde quanto começou Calouste a interessar-se por manuscritos, ou mais propriamente, pela arte do livro?”, questiona Rui Ramos.

Em forma de resposta, João Carvalho Dias refere que “Calouste sempre se interessou por livros, e, desde muito cedo, coleciona-os, sabendo-se que o arménio comprou livros a partir de 1899 – em especial, impressos do século XVIII –, ainda que o primeiro registo de uma aquisição date de 1900, tratando-se de um documento islâmico, no caso um Alcorão com uma encadernação lacada”.

A esse propósito, o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian refere ainda que “Gulbenkian continuaria a adquirir livros e folhas soltas, também chamados de fragmentos, apesar de, infelizmente, a sua comercialização implicar, muitas vezes, a decomposição do livro. Facto que permitia ganhar mais do que se se vendesse apenas o livro”.

Entre as aquisições de Gulbenkian, “contavam-se também manuscritos europeus, principalmente a partir de 1919, ainda que de diferentes centros produtores, mas cujo perfil ajudou a formatar futuras compras, em especial porque Gulbenkian adquiriu livros provenientes de uma grande coleção, no caso o britânico Henry Yates Thompson que tinha a idiossincrasia de apenas ter 100 livros na sua coleção, e, quando chegava à centena, vendia os “excedentários”.

Livro de Horas (Horas de Holford) Foto: Carlos Azevedo

Interesse multicultural

Um dos aspetos importantes “da coleção de livros manuscritos antigos de Gulbenkian é que abrange dois mundos: a Europa Ocidental, mas também o Oriente, mais especificamente, os grandes centros de produção de livros preciosos do Império Otomano e do Império Persa”, indica Rui Ramos.

Face à riqueza do espólio de Calouste, “em 1933, o historiador norte-americano Arthur Upham Pope chegou mesmo a afirmar que nem o xá da Pérsia teria uma coleção tão rica quanto a de Gulbenkian”, adianta o anfitrião do podcast. Mas, isso devia-se apenas às origens de Gulbenkian no mundo otomano? Ou sabe-se se o interesse pelos manuscritos e encadernações orientais foi anterior ao gosto pelos manuscritos franceses e flamengos do século XV e princípio do século XVI?”, pergunta.

“O que sabemos é que a influência otomana sempre esteve presente na filosofia de Calouste enquanto colecionador”, refere João Carvalho Dias, mas, além disso, como habitualmente, “Gulbenkian soube estar bem rodeado de especialistas e gente influente, como o caso de Pope, uma figura que, apesar de controversa, aconselhou e propôs aquisições ao colecionador arménio”.

“Mas nunca é demais sublinhar o facto de Gulbenkian ser um apaixonado por livros desde sempre, fossem manuscritos do Alcorão, como já referido, folhas soltas do mundo islâmico ou livros europeus”, afirma o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian.

E, acima de tudo, continua João Carvalho Dias, “a Calouste agradava-lhe as miniaturas, como se fossem pequenas pinturas, cujas margens eram ricamente decoradas, quer de origem europeia ou do mundo islâmico, com preferência para o Irão, assim como as encadernações”. No seu todo, Gulbenkian construiu “uma coleção magnífica, criteriosamente reunida, que cruza culturas e que tanto surpreende pela beleza das miniaturas, como pela extraordinária caligrafia”, acrescenta.

Aprender com os melhores

Tal como com outras obras de arte que adquiriu, “também no caso dos manuscritos, Calouste Gulbenkian comprava objetos que já pertenciam a coleções”, refere Rui Ramos, acrescentando que o filantropo arménio “se tornou ativo como colecionador, no fim do século XIX, encontrando um mundo em que muita coisa já tinha sido apropriada por colecionadores, e onde quem queria fazer uma coleção de arte importante tinha de esperar por oportunidades, como as trocas ou as vendas de outros colecionadores”.

Simultaneamente, “se Gulbenkian queria garantir a qualidade da coleção, não podia dispensar a informação e a orientação de especialistas, sendo por isso pertinente falar da proveniência das coleções e dos conselheiros que ajudavam nas aquisições”, refere o historiador e anfitrião do podcast Only the Best.

Para João Carvalho Dias, diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian, “o sentido de oportunidade para a concretização das aquisições é fundamental para qualquer que seja o colecionador e Calouste Gulbenkian não fugia à regra”.

Além disso, “era também essencial ter acesso a informação privilegiada, o que permite antecipar a oferta de compra ou perseguir uma obra até que surja em leilão ou em negociação privada. Para isso a rede de conselheiros que Gulbenkian constituiu foi fundamental”, acrescenta.

Entre eles, João Carvalho Dias destaque nomes como “Giraud-Badin, Henri Leclerc, ou De Marinis, mais associados aos livros europeus, e outros que propõem manuscritos de diferentes culturas, como fizeram Bernard Quaritch ou Jacob Hirsch de Genebra”. Mas seria com Alfred Chester Beatty, magnata e filantropo norte-americano, amigo pessoal de Gulbenkian, “que o arménio aprenderia muito sobre a arte do colecionismo, não esquecendo outros intermediários seus compatriotas e homens da sua confiança”.

Encadernação de um manuscrito do Alcorão Pérsia do século XVI Foto: Catarina Gomes Ferreira

Inspiração religiosa

De entre a coleção de manuscritos reunidos por Calouste Gulbenkian, Rui Ramos destaca um em particular. Falamos de “O Livro das Horas de Holoford, produzido, estima-se, em 1526, na Flandres, e que chegou às mãos de Gulbenkian em 1935”. Mas qual seria a sua importância no seio da coleção, até porque não era o único livro de horas (exemplares de devoção criados no final da Idade Média que permite ao fiel acompanhar as orações de cada hora e período do ano) do referido espólio?

Segundo os registos, “dos 24 livros manuscritos europeus na coleção, 14 são livros de horas, havendo ainda três fragmentos que pertenceram a exemplares do género, o que é representativo da preferência de Gulbenkian”, revela João Carvalho Dias. No entanto, “diria que o livro que refere, que incluía pinturas dos miniaturistas Gerard Horenbaut e Simon Bening, é, de facto, uma aquisição complexa, uma vez que não se concretiza quando a Coleção Holford vai a leilão, em 1927, mas mais tarde”, acrescenta o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian.

Sabe-se ainda que “em 1927, Gulbenkian adquire dois fragmentos de um Santoral (livro de textos de celebração do ofícios, hinos e vidas de santos) do século XIV e um fragmento de um Gradual (livro que reúne os itens musicais presentes durante uma missa) do século XV, todos italianos”, enumera João Carvalho Dias, “assim como o extraordinário jarro de jade timúrida, atualmente um dos ex-libris da coleção do Museu Calouste Gulbenkian, do século XV, e dois bustos em bronze: Luís XIV e General Turenne”.

A venda do “espólio de Holford continuaria em 1928 e 1929, em Dorchester House, mas Gulbenkian só adquire o Livro das Horas de Holford em 1935, através de Erwin Rosenthal, antiquário, historiador e colecionador, de Zurique”, explica João Carvalho Dias. Isso porque o livro em causa “tinha sido propriedade de Alfred Chester Beatty, amigo de Gulbenkian, que o tinha vendido a Rosenthal em 1932”.

Ecos do Renascimento

Mas, além dos livros manuscritos, tal como já foi referido, “Gulbenkian também tem uma coleção de livros impressos, nomeadamente edições do século XVI de textos clássicos gregos e latinos, como obras do século XVIII e XIX, com encadernações muito elaboradas”, refere Rui Ramos. “Mas que edições são essas”, pergunta o historiador?

“Relativamente aos livros que podemos considerar da época do Renascimento, nomeadamente obras de Flavio Josefo, Valerio Maximo, Aristoteles, Petrarca e outros, são edições muito cuidadas, excelentemente impressas, muitas delas com encadernações muito requintadas, e, no fundo, exemplares de bibliófilo”, responde João Carvalho Dias.

Muitas delas, “Gulbenkian terá adquirido pela encadernação, mas obviamente que isso não vai substituir o facto de se poder tratar de uma edição menor. Aliás, no sentido contrário, poderia também existir interesse por uma edição com uma encadernação menos cuidada, se o conteúdo for merecedor de investimento”, acrescenta o diretor-adjunto do Museu Calouste Gulbenkian.

Para ver essas verdadeiras obras de arte em forma de manuscritos iluminados ou um exemplar de excelência como o Livro das Horas de Holoford, torna-se obrigatória uma visita ao Museu Calouste Gulbenkian, “com a particularidade de a coleção de livros, por razões de conservação, estar sujeita a rotatividade nas vitrinas do Museu”, explica João Carvalho Dias, “e nem sempre são os mesmos livros que estão expostos”.

No entanto, “ao visitar a Sala de Arte Europeia dos Séculos XII a XVII, podemos encontrar códices iluminados; já na Sala dedicada às artes do Renascimento, que inclui as grandes tapeçarias de Júlio Romano, encontram-se igualmente livros e encadernações da fase renascentista. É difícil garantir que este ou aquele livro estejam disponíveis, ainda que possa fazê-lo em relação ao Livro das Horas de Holford, pois poderá ser visto nos próximos meses. Mas, no geral, visitar o nosso Museu é uma excelente oportunidade para fazer novas descobertas e para se surpreender”, aconselha Carvalho Dias.

Daqui a quinze dias, “na próxima sessão do podcast Only the Best, vamos abordar outro aspeto da coleção Calouste Gulbenkian: o seu transporte e conservação, tendo em conta a viagem que todas as obras tiveram de fazer para chegar Lisboa”, promete Rui Ramos.

Saiba mais em Only The Best