Publicado pela primeira vez em Janeiro de 2018, Um casamento americano – ou An American Marriage, no original –, que nos chega agora a Portugal via Quetzal, tem uma prosa que vai directa ao osso. Ao longo do romance, tudo é tensão, tudo é enxuto.

A narrativa volta-se para um casal afro-americano de classe média. Celestial e Roy vivem em Atlanta e o casamento fresco segue sem grandes sobressaltos, durante um ano e pico, até Roy ser injustamente acusado de violar outra mulher. Ao longo da narrativa, não há dúvida da sua inocência, já que a acção é vista e contada por ambos e que fica claro que estavam juntos no momento da alegada violação. Inocente, o homem é condenado e começam as juras de amor. Tinham-se conhecido na Universidade e tudo era futuro. O futuro, ainda assim, implicava 12 anos de prisão. Os dois apostavam em sobreviver-lhes. Não havia volta a dar, o que havia sido jurado duraria para sempre.

O que não é claro para os amantes é-o de imediato para os leitores. Doze anos de cadeia são tempo a mais para um amor tão breve e a ânsia de resistir embate no dia-a-dia. Enquanto Roy está preso, os dois estão casados sem viver um casamento. Não partilham a vida e não estão habituados um ao outro. As visitas de Celestial tornam-se cada vez mais espaçosas e cada vez há menos a dizer.


Título: Um casamento americano
Autor: Tayari Jones
Tradução: Tânia Ganho
Editora: Quetzal
Páginas: 344

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Nesta parte da narrativa, em que os dois estão separados, a acção deixa de ser uma versão dos narradores e faz-se documental, já que é feita de forma epistolar, registando o diálogo entre ambos. A assimetria está sempre lá: Roy está preso, Celestial está livre. Surge o ciúme e surge a impotência. Volta e meia, surge o ressentimento de Roy por pagar uma culpa que não é sua e de não haver ninguém com quem dividir justamente o custo. Da parte dela, há ainda o sofrimento por ter a vida emperrada e a necessidade de ressalvar que, ainda que Roy seja inocente, ela também o é. Ainda assim, parece obrigada a sofrer com ele até ao fim. Aos poucos, o coração quer culpar, a razão não deixa; outras, a razão quer e o coração impede. A vida acontece e quem está em liberdade tem mais hipóteses de vida. Assim é, e quebra-se o laço entre os dois, por parte da única que pode ter sumo fora daquilo.

Nesta parte da narrativa, Andre, grande amigo em comum dos dois, ganha peso. Em relação a Celestial, vai além da amizade, passa a amante. Começa aqui um trio cheio de nuances morais, expectativas traídas, sonhos desfasados, desencontros amorosos. A autora já havia revelado que, inicialmente, planeara que a voz do livro fosse apenas a de Celestial. Assim, o leitor teria apenas o seu ponto de vista. Ao acrescentar mais dois, a acção ganhou asas. Roy acaba por ser libertado e ver o encontro dos três por três pares de olhos tem muito a dar à narrativa. Não apenas se vê a acção das personagens, como se lê o que têm na cabeça, e é aqui que a empatia se desenvolve em toda a linha. Em algumas dezenas de páginas, o leitor tem a missão de ver a interacção entre três pessoas sendo cada uma delas à vez, o que significa que pouco depois já é as três ao mesmo tempo.

Com tudo isto, o livro funciona não apenas de forma orgânica, mas também energética. Em simultâneo, o leitor vê a vida a acontecer em várias frentes. Não precisa de cogitar sobre o que é a vida após a prisão, já que tudo se desenrola da forma mais provável. A dada altura, olha-se até com sobranceria para a ideia do amor eterno, do casamento como aço, mas também se sente o vazio do que tem de acontecer: depois da prisão, a vida que cristalizou na cabeça terá rumado a outras paragens. E, ainda que Celestial não peça o divórcio ou não mude a fechadura da casa, a casa a que Roy regressa não é sua, porque a vida que teve ali já não existe.

Por tudo isto, Um casamento americano não se lê sem sobressaltos. Ao mexer com o quotidiano, mexe com a intimidade. Um sonho desfeito tem força bruta e é essa brutalidade que se lê, e Jones marcou-a com uma prosa cristalina, sem enfeites, só com o que interessa, só com a realidade que funciona como artéria de emoção.