Num modelo capitalista sem falhas, os cinco membros dos Radiohead estariam agora a enfiar-se num avião, rumo a uma das centenas de cidades onde tocariam OK Computer na íntegra, para comemorar os 25 anos do lançamento daquele que é, até hoje, o seu disco mais conhecido e aquele que os tornou mega-estrelas.
Segundo o mito, após o êxito do single “Creep” – saído do disco de estreia – Yorke terá decidido nunca mais passar pela vergonha de ganhar dinheiro com o que, para ele, era uma canção menor e não representativa daquilo que os Radiohead poderiam fazer. O que o terá conduzido a uma demanda de evolução, notória em The Bends, o segundo álbum dos Radiohead e primeiro repleto de grande escrita.
Isso ainda não era suficiente para Yorke, um melómano cujo conhecimento musical o impedia de tirar satisfação de canções vagamente folk e sofridas, pontuadas pela ocasional explosão – mesmo que se possa alegar que as progressões de acordes não eram convencionais e alguns arranjos já denotavam uma inventividade incomum.
Isto conduz-nos inevitavelmente, e segundo as leis capitalistas, a OK Computer que fez 25 anos em 2022 e devia ser alvo de uma digressão e múltiplas reedições para capitalizar na nostalgia e em eventuais novos fãs que tenham surgido entretanto. Thom Yorke não esteve para isso e foi fazer The Smile com Johny Greenwood (o genial guitarrista dos Radiohead) e Tom Skinner, o admirável baterista dos Sons of Kemet. E foram eles que estiveram no Coliseu dos Recreios, ao vivo, na semana passada.
[“Free in the Knowledge”:]
Foi, diga-se, um belo concerto, baseado quase em exclusivo em A Light For Attracting Attention, o disco que o trio lançou este ano e que soa como o irmão esquecido de OK Computer, Kid A e Amnesiac, como se fosse a reunião das canções dessa época que os Radiohead se esqueceram de editar. Ou, pelo menos, as canções mais krautrock que eles se esqueceram de editar.
Quando se escrever a história definitiva da música popular entre 1990 e 2010, muito dificilmente o trio composto por Ok Computer, Kid A e Amnesiac não será visto como o momento-charneira do indie-rock, quando este atingiu tudo o que poderia ser sem perder um mínimo de identidade rock.
Nesses três álbuns, os Radiohead uniram o rock progressivo (nunca esquecer as milhentas partes de “Paranoid Android”), o jazz, a eletrónica mais disfuncional, o rock tradicional de riffs (“National Anthem”), até mesmo uma espécie de funk sombrio, enquanto esticavam as possibilidades do que uma canção podia ser, do que um arranjo podia ser, de onde e quando colocar uma melodia e como.
Não era possível, não lhes foi possível alguma vez voltarem a um nível tão alto, porque essa tríade simplesmente mudou a parada de tal forma que tudo o que fizessem daí para a frente seria inevitavelmente comparado com cada compasso desses três discos; mas também porque é muito difícil a qualquer música reinventar-se tantas vezes como os Radiohead o fizeram nesse curto intervalo de tempo.
A partir daí, ou pareceram querer muito soar a Radiohead (“There there” é a canção em que os Radiohead mais se esforçam por soar a Radiohead, com as progressões em acordes menores e os dedilhados angustiantes) ou parecerem querer muito soar a uma banda que nunca se cansa de inovar – o problema é que nem sempre inovar merece um prémio. A dada altura, os Radiohead podiam adotar as mais estranhas escalas, tocar em 9/7 e depois fazer uma mudança tonal e prosseguir em 5/12 que tudo isso, por mais incomum, nos levava a pensar: “Pronto, lá estão estes moços a esforçar-se demasiado”. Em certos momentos pareceram quase uma banda de fusão jazz-rock com uns pós de progressivo ou eletrónica – a definição de “moderno” no final da década de 90, mas muito longe do que, desde então, andou a entusiasmar o povo.
O centro da música mudou-se do rock e seus afiliados para o hip-hop, o r’n’b, os kuduros e os reaggaetons – ser latino começou a ser mais interessante que ser branco. E por mais louvável que fosse o esforço dos Radiohead em nunca estarem quietos, qualquer coisa ali começou a saber a requentado.
[“Speech Bubbles”:]
Isto se os Radiohead que até agora existiram forem realmente os Radiohead – a sensação que os últimos anos trouxeram era que Greenwood estava mais interessado nas suas bandas-sonoras; que Yorke estava mais interessado nas suas experiências eletrónicas e sessões de DJ. De vez em quando lá se juntavam os cinco para porem uns instrumentos por cima de umas canções que Yorke tinha lá para casa.
Em algum momento há-de ter ocorrido a Yorke e Greenwood que os outros três elementos dos Radiohead não eram propriamente necessários – Yorke sempre compôs as canções da banda, Greenwood sempre fez os arranjos. Há uma diferença entre fazer canções para cinco pessoas (para começar: é preciso arranjar partes para cinco pessoas sempre) e fazer para três: em palco, os Smile são bateria, baixo e guitarra ou bateria, teclados e baixo ou bateria, teclados e guitarra ou bateria, guitarra e guitarra. Qualquer uma das soluções permitiu recriar as canções de A Light For Attracting Attention sem perdas de maior e com uma versatilidade impressionante.
Talvez a grande diferença de A Light For Attracting Attention para o quinteto conhecido por Radiohead seja, logo para começar, o facto de os Smile não serem os Radiohead – o Coliseu estava cheio e as pessoas pareciam conhecer todas as letras das canções dos Smile, e até será de admitir que sendo a maior parte daquelas pessoas fãs dos Radiohead apreciem verdadeiramente os Smile – mas aquilo que lhes foi servido foi praticamente um concerto de krautrock – por vezes ali no palco podiam muito bem ser os Can ou os Kreidler ou os Tortoise com um pouco mais de emoção.
Essa vertente salta mais ao ouvido em palco porque o palco não tem tantas soluções como o estúdio – torna-se mais claro o número de riffs repetitivos, a extraordinária bateria que lembra um pouco o afro-beat. Não que isso não esteja no disco: à primeira escuta, “The opposite” lembra-nos a bateria de Tony Allen, com aqueles ritmos quebrados, as guitarras, dementes e dissonantes, soam a uma desconstrução do high-life do Gana (e não pensem que eles não sabem o que é, eles sabem).
[ouça o álbum “A Light for Attracting Attention” na íntegra através do Spotify:]
Esta não é a única vez em A Light For Attracting Attention que surge esse cruzamento entre ritmos afro-beat e riffs repetitivos à Can: “The Smoke” parece vinda da Alemanha de finais de anos 60, com ótimos metais a adornar, enquanto em “Thin Thing” a malha é tão repetitiva que a dado momento a canção se torna num festival de como uma bateria pode encher uma canção. (Em todo o concerto foi assim: de forma discreta Tom Skinner preencheu cada vazio e provocou-nos abanos na espinha, mesmo que nenhuma destas canções tenha sido pensada para dançar.)
É um objeto esquisito, A Light For Attracting Attention: tanto soa a um disco de Robert Wyatt (ou dos Soft Machine) como aos Can como até, na lindíssima “Free in the knowledge” quase aos Radiohead de The Bends (guitarra acústica, melodia bonita, cordas, algum ímpeto grandioso); tem o seu momento jazzy à Amnesiac em “Pana-vision” (ao piano, com a bateria a entrar sempre no tempo menos óbvio), tem as suas eletrónicas, em “The same” e “Speech bubbles”, que é uma canção LINDÍSSIMA.
Mas ao contrário dos discos mais recentes dos Radiohead, A Light For Attracting Attention nunca parece estar a esforçar-se; nunca parece soar esquisito só para não soar comum; soa a três tipos a divertirem-se em estúdio, com um conjunto limitado de instrumentos e tempo – por vezes há canções em que pensamos que com um pouco mais de esforço estaria ali um hino, por vezes parecemos estar perante uma demo mas depois ao vivo o trio torna-se numa máquina de riffs e bateria desgovernada a orbitarem em torno da voz de Yorke, que é acaba sempre por ser o centro de tudo.
Ocasionalmente acontece isto: um par de tipos pelos quais nos havíamos desinteressado voltam a fazer música vibrante, que ao sair de um amplificador nos atormenta o esqueleto. Perdoem a piada fácil, mas parece que Thom Yorke e Johny Greenwood voltaram a sorrir quando acabam uma canção.